sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um encontro com Henry

Custa ver um excelente cozinheiro, como o António, preso a um telefone a vender produtos que ele próprio não consome nem aprecia. Em vez de estar numa cozinha, pondo ao serviço o melhor das suas aptidões, está ao telefone a ganhar a vida. Temos, portanto, um mau vendedor no lugar de um, presumível, bom chefe de cozinha.

Enquanto pensava nisto, fui abordado por uma rapariga no meio de uma avenida barulhenta e poluída, que me queria fazer um inquérito sobre os meus hábitos alimentares. A cara dela não me era estranha e acabámos por descobrir que tínhamos amigos em comum – era a Rita, conhecida pelo seu talento especial para o ballet, que pratica desde pequenina. No entanto, anda a fazer inquéritos para ganhar a vida. Temos, portanto, uma inquiridora no lugar de uma excelente dançarina.

Continuei a caminhar e, quando olhei para o relógio, decidi que estava na hora de ir ter com o Henry. Não podia chegar atrasado àquele encontro e não queria repetir para mim próprio, pela enésima quarta vez, que não podia chegar constantemente atrasado a todo o lado. Ainda para mais, aquela seria uma oportunidade única para estar com aquele ilustre senhor.

Apanhei um autocarro rumo à Praça da Memória. Quando cheguei, apressei-me a ir comprar tabaco a um quiosque ali perto. Lá estava o André a vender coisas para ganhar a vida. Tive a felicidade de um dia o ouvir tocar guitarra portuguesa – tocava como as sereias cantam. Temos, portanto, um vendedor cabisbaixo no lugar de um exímio guitarrista.

Quando cheguei à porta do local combinado, resolvi, antes de entrar, ligar à Francisca, para saber se a entrevista daquela manhã lhe tinha corrido bem. Felizmente, correu muito bem e, finalmente, a Francisca encontrou um emprego que lhe permite sustentar o seu pequeno Diogo. Vai trabalhar para uma grande consultora, o que lhe permitirá ter o rendimento suficiente para viver dignamente com o seu filho. Como todos nós, tinha que ganhar a vida. Nunca vi ninguém ensinar tão bem com a Francisca. Foi minha colega de curso e era a ela que todos recorriam quando tinham dúvidas. Além disso, gostava de investigar, mas teve o azar de nascer num país onde, para se fazer investigação, é preciso ser-se capaz de tocar com o nariz na nuca. Temos, portanto, uma consultora esforçada no lugar de uma professora e investigadora brilhante.

Finalmente, abri a porta e desci as escadas empoeiradas daquele sítio que conhecia bem, apesar de nunca lá ter ido. Quando cheguei à cave, um empregado vestido a rigor recebeu-me de uma forma muito familiar e encaminhou-me para uma pequena sala onde já estava Henry David Thoreau, um homem sábio do século XIX.

Entre copos e profundas baforadas, a conversa eternizou-se. De facto, quando estamos lado a lado com um ilustre, ouvir torna-se num prazer imensurável. A maneira como me falava da importância de proteger e preservar a natureza impressionou-me muitíssimo, pois, para um homem que viveu num tempo onde essa questão era desprezada – ainda hoje o é em grande parte do mundo –, é mais uma constatação de que há quem viva à frente do seu tempo.

Quando Henry me pediu que contasse coisas sobre o meu país, falei-lhe, após orgulhosamente dissertar sobre quase nove séculos de aventuras e desventuras, de um governo que tem um primeiro-ministro que, na verdade, é um fantoche, que tem um ministro de seriedade muito duvidosa, que é o verdadeiro primeiro-ministro, e que tem um ministro das finanças que é um agente ao serviço de interesses externos – como se demonstrará quando ocupar um belíssimo lugar numa qualquer instituição internacional.

Henry não ficou minimamente surpreendido. De forma particularmente serena, disse-me que a única forma de lutar contra isso é através da desobediência civil. Explicou-me o que isso significava para ele e disse-me, olhos nos olhos, que “a única obrigação que tenho é fazer a toda a hora o que considero certo.”

Na verdade, não tenho a coragem nem a irreverência de um homem que, para se libertar do jugo dos que têm por hábito sentarem-se sobre os demais, foi preso e isolou-se num bosque para viver sob um regime de auto-suficiência. No entanto, lá vou tentando libertar-me das cordas que, qual marioneta, me controlam os movimentos.

Falei-lhe também da situação de amigos e conhecidos, que é também a minha. Muitos no desemprego, outros tantos a fazer o que não gostam de forma a ganharem a vida, o desperdício de talento que transborda e é absorvido por outros países. Enfim, a desgraça de um país.

Após um silêncio construtivo, Henry perguntou-me “como podemos tornar o nosso ganha-pão poético?” Pensei durante algum tempo e, quando me preparava para responder, de forma subtil, que isso seria lírico, ele disse “é que, se não for poético, não é a vida que ganhamos, mas morte”.

Que força tinham aquelas palavras. No entanto, sabia que aquilo que sentia naquele momento se evaporaria, em parte, com o tempo, tal como quem sai de uma sessão de cinema fantástica cheio de novas energias que, com o passar das horas, se vão dissipando. Contudo, continuo a fazer um esforço para integrar aquela máxima em algumas das minhas decisões – mesmo que muito ao de leve.

Foi uma conversa de tal modo enriquecedora que, certamente, inspirar-me-á em muitos momentos. Principalmente, nos momentos em que for invadido pela monotonia, onde me lembrarei do seu olhar penetrante, aconselhando-me a agir de forma a “nunca viver uma única hora insignificante”.

Publicado no jornal online ptjornal, em 16/12/2012

Sem comentários: