domingo, 14 de abril de 2013

O Dia dos Namorados

Não tenho nada contra aqueles que festejam o dia dos namorados. Estão no seu direito e, se isso lhes traz alegria, fico contente por isso. Pessoalmente, não tenho nada a favor desta data comercial importada dos EUA. É uma data que tem tanta tradição em Portugal como o Halloween, ou seja, nenhuma. Ademais, o S. Valentim – o alegado santo padroeiro dos namorados − é uma figura da qual pouco se sabe, sendo até possível que nunca tenha existido.

Se o leitor estiver a pensar que o autor deste artigo é uma pessoa amargurada com o amor, que inveja os casais que se passeiam de mão dada no dia de S. Valentim, que é mais um que se juntou ao coro da frustração dos que dizem que o amor não existe, está muitíssimo enganado. A minha relação amorosa com uma princesa oriunda dos reinos de Odin e Frigg, constitui a minha maior conquista. Por mais oferendas que os deuses me dessem, nunca trocaria este amor por nada, porque este tem o condão de fazer tudo à sua volta parecer insignificante.

Agora que o leitor percebeu que o que me motiva neste pequeno texto não é a frustração mas a convicção, posso continuar a minha crítica ao dia dos namorados.

O dinheiro é como a droga: por mais que tentemos que ele não circule e não entre em certos “lugares”, ele acaba sempre por passar. O dia dos namorados é a tentativa de comercializar o amor, é tentar fazer dinheiro a partir de um laço que nada tem de material. O dia 14 de Fevereiro é o único dia em que me recuso a levar um presente à minha princesa. Já basta o que o Pai Natal fez com o Natal (outra importação made in USA), para que o S. Valentim faça o mesmo com os namorados.

Nas sociedades ocidentais, a celebração traz sempre no seu cerne a recompensa material, que faz sombra ao motivo da própria celebração. É disto que não gosto no dia de S. Valentim, pois, ao afirmar-se como o dia dos namorados, pretende vincular os casais à obrigação de recompensarem materialmente o seu par. Ora, qualquer vinculação que existia entre duas pessoas que se amam terá que vir, para ser verdadeira e genuína, de dentro do elo que as une e nunca de fora.

Já faltou mais para que apareça uma figura esbelta, vestida a rigor e com um saco cor de rosa às costas, dizendo, com uma voz triunfante, “meus meninos e minhas meninas, se realmente amam os vossos pares, terão que o provar com um presentinho… e já agora, tenho aqui alguns que até estão em saldo”.

Como já disse e volto a dizer, não tenho nada contra aqueles que festejam este dia e cujo amor é tão verdadeiro como o meu. Simplesmente, repilo com todas as forças que tenho os vendilhões do templo.

Publicado no ptjornal, em 17/02/2013

domingo, 31 de março de 2013

O homem e a sombra

As sandálias gastas dos quilómetros incontáveis. As calças de pano cobertas do pó que a cada metro se acumula. A camisa aos quadrados de manga comprida, meia desabotoada, desfraldada e amarrotada. Um pano branco que cobre a cabeça, impedindo que a lucidez se evapore perante o sol ardente de cada dia. Um homem só, que teme ser abandonado pela própria sombra.
No deserto – onde, de acordo com o saber tuaregue, o homem reconhece a sua própria alma – o tempo estende-se no horizonte. Se, ao olhar o céu, o homem descobriu o infinito, ao olhar o deserto, o homem descobriu a eternidade. Foi aqui que Moisés, Jesus e Maomé transcenderam a sua própria existência, tornando-se numa candeia desta grande travessia que é a vida.

O caminhante, a cada dia mais cansado, procurava o seu destino a cada novo passo. A vida separou-o de tudo o que amou. A vila onde nasceu foi feita em cinzas pelo calor das chamas, os amigos trespassados pelas lanças afiadas de guerras odiosas, a mulher e o filho, demasiadamente doloroso para ser lembrado, são a razão derradeira para cada pegada na areia. Apenas lhe resta a sombra.

Pedira ajuda a adivinhos, bruxos e feiticeiros, mas tudo o que lhe deram foram promessas por cumprir em troca das moedas de esforço de anos de trabalho. Tal como uma presa que, apanhada pela doença, se torna no alvo ideal do predador, a tragédia dos seus dias deu origem à fraqueza que consentiu o esvaziamento dos seus bolsos.

Vidrado na sombra, via que, quanto mais se esticava, maior ela era. Sabia que, no dia em que tombasse, também ela tombaria. Via, na sombra, um espelho baço que o acompanhava a cada dia e, se o perdesse, deixar-se-ia de reconhecer. A sombra era tudo o que tinha.

Num momento que o tempo não contou, atravessou os extremos pela extremidade onde se tocam – da intransponível escuridão que ofusca tudo o resto, até à plenitude que dá sentido ao mais ínfimo grão de terra que se lhe cola aos dedos. Ao aperceber-se que, face a todas as amarguras e atracções que se lhe atravessaram no caminho, se manteve fiel a si próprio, o homem, que ainda vive no deserto, é hoje, provavelmente, o último a temer ser abandonado pela própria sombra.

Publicado no ptjornal, em 03/02/2013

quarta-feira, 13 de março de 2013

Mar da China: um mar de interesses e de conflitos















Os problemas económicos e financeiros, devido à especial dimensão que atingiram na Europa, têm merecido grande parte da nossa atenção. No entanto, é sempre importante olharmos para outras zonas do globo e saber o que por lá se vai passando, não vá, um dia, o imprevisto bater-nos à porta.

O mar da China meridional é, seguramente, uma dessas zonas para as quais devemos olhar. Rico em recursos haliêuticos e em jazidas de hidrocarbonetos, este mar deve a sua enorme relevância ao facto de albergar algumas das principais rotas marítimas internacionais, o que leva a um confronto de interesses entre diversas potências, principalmente entre a China, os EUA, o Vietname e as Filipinas.

Alguns governos das regiões costeiras chinesas, como Hainan, procurando favorecer as suas empresas, desenvolvem uma política de influência e de ocupação do mar da China meridional, chegando mesmo a incentivar os seus pescadores a avançarem até às zonas de conflito e a equipar os seus navios com sistemas de navegação por satélite, o que permite às autoridades chinesas actuarem mais rapidamente em caso de confronto. De facto, os barcos de pesca têm servido como uma peça importante da estratégia de influência traçada pela China.

No entanto, a partir de Abril de 2012, as tensões entre os interesses de diversos países no mar da China meridional assumiram um carácter mais beligerante. A disputa do Recife Scarborough, entre a China e as Filipinas, culminou com a imposição do mais forte: a China assumiu o controlo deste recife e impediu os filipinos de pescar naquela zona.

O clima ficou ainda mais cinzento no momento em que a China e o Vietname tiveram um despique entre si. Após o governo vietnamita ter implementado novas regras de navegação nas águas dos arquipélagos Spratleys e Paracels, Pequim respondeu através do estabelecimento de um quartel militar nesta região, paralelamente a medidas de restrição económica, mostrando que não facilitará no que concerne à defesa dos seus interesses.

Contudo, o pior ainda estava para vir. Desta feita, foi no mar da China oriental que ocorreram novos conflitos. No último mês de Setembro, o governo nipónico anunciou a aquisição de três das cinco ilhas Senkaku, até então na posse de um japonês muito rico. Ora, o nacionalismo chinês atinge o cume quando se trata de problemas com o Japão. Não nos esqueçamos do massacre de Nanquim, ainda muito presente na memória colectiva chinesa, onde morreram mais de 200.000 chineses. Por isso, a sociedade chinesa reagiu intensamente e pressionou o governo para responder de forma firme ao Japão. Sem demoras, Pequim, para além de medidas punitivas do ponto de vista económico, ensaiou diversas manobras militares, traçando, oficialmente, uma linha fronteiriça a partir da qual as ilhas Senkaku ficam sob administração chinesa.

Seja qual for o destino deste conflito em particular, observa-se um alarmante crescimento dos nacionalismos e da corrida aos armamentos, tornando o mar da China numa região potencialmente conflituosa. Não é por acaso que o tabuleiro de xadrez norte-americano se virou, em detrimento do Atlântico – e, por consequência, das Lages, onde o contingente militar norte-americano será seriamente reduzido –, para o Pacífico.

Numa altura onde a Europa se vê deslocada para a periferia, não se vêem organizações internacionais com força suficiente para travar esta espiral de conflito. Uma coisa é certa: uma guerra na região do Pacífico, a acontecer, poder-se-á tornar numa terceira grande guerra.

Publicado no Letra1, em 29/01/2013

sábado, 2 de março de 2013

Salve-se quem puder

Enquanto uns senhores andavam por aí, após o anúncio do regresso aos mercados, a lançar fogo-de-artifício pelas calçadas da miséria em que se tornaram as nossas cidades, lia, através do Observatório da Emigração, que, num pequeno país como o nosso, emigram, todos os anos, cerca de 120 mil pessoas. Este número, que se tem verificado nos últimos anos, só não é maior porque as oportunidades no estrangeiro não proliferam.

De facto, custa ver os tsunamis que por aqui passam, arrastando consigo muitos milhares de compatriotas para além fronteiras. Uns param no centro da Europa, outros na África meridional e outros há que só param no outro lado de lá, junto dos simpáticos cangurus. É com cada tsunami que nem dá para acreditar – já estive mais longe de construir um bunker para me manter a salvo.

Estou convencido que, considerando os efeitos pós-traumáticos que resultam destas tragédias, devemos continuar a evitar tocar neste assunto. O facto de estes tsunamis fazerem lembrar aqueles que por cá passaram na década de sessenta não deve merecer demasiada atenção. É demasiado doloroso pensar que, passado meio século, continuamos a viver num Portugal onde não cabem todos os portugueses.

De qualquer das formas, não podemos ser piegas. Temos que ser valentes. Afinal de contas – como disse Pedro −, “emigrar não pode ser um estigma”. Ah! Já me sinto muito melhor com estas palavras.

Viver no estrangeiro é uma experiência muito gratificante – sim, não podemos ser piegas –, mesmo quando não tenha sido por opção. Isto não tem nada que saber no que se refere à gestão de pessoal: se há trabalhadores a mais, eles que emigrem. Família que fica para trás? Isso resolve-se com uma visita no Verão. Família por construir? Isso, com o avanço da medicina, trata-se aos quarenta. Idosos a mais? Citando o ministro das finanças japonês, Taro Aso, que se os deixe “morrer rapidamente”.

Aí está a doutrina Hayekiana solidamente implementada. Da importância do indivíduo à ideia de que − como dizia Margaret Thatcher − "não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos", vai o suficiente para que se grite a bordo, “salve-se quem puder”!


Publicado no ptjornal, em 27/01/2013

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Berlim em protesto na Semana Verde Internacional

No contexto da Semana Verde Internacional, dezenas de milhares de pessoas mostraram a sua indignação com a política agrícola europeia, responsável, entre outras questões, pelo atraso do desenvolvimento dos países mais pobres. Como alternativa à agro-industrialização, os manifestantes propõem reformas que promovam as pequenas explorações agrícolas, privilegiando a qualidade dos alimentos e o respeito pelo meio-ambiente e pela biodiversidade. 

Pelo terceiro ano consecutivo, dezenas de milhares de pessoas saíram à rua em Berlim, no passado dia 19 de Janeiro, para celebrar o início da Semana Verde Internacional − um evento durante o qual se realiza a maior feira agrícola do mundo.

Assim, sob o lema «Já temos o suficiente! Boa comida. Boa agricultura. Agora!», cerca de 25 mil manifestantes marcharam, num movimento colorido e heterogéneo, rumo ao Gabinete da Chancelaria federal, onde se encontravam, numa conferência dedicada à Semana Verde, os Ministros da Agricultura de mais de oitenta países para discutir estratégias de segurança alimentar.

Setenta tractores agrícolas e veículos destinados à apicultura acompanharam esta manifestação, demonstrando que muitos agricultores, apicultores, entre outros trabalhadores rurais, partilham as preocupações relativas às consequências nefastas do agro-negócio. Para estas pessoas, deve-se dar total primazia aos interesses dos consumidores e dos agricultores, que se reflectem na conservação da natureza e na protecção ambiental.

Foram entoados cânticos durante o percurso desta manifestação, de entre os quais se destacava «se vocês perseguirem os agricultores, os animais e as abelhas, não se tornarão deputados», ao mesmo tempo que eram agitadas bandeiras e cartazes que expressavam o repúdio pela criação industrial, pelo uso de pesticidas, pela pressão crescente dos preços praticados pelos produtores industriais e pelo impacto negativo da industrialização nas pequenas explorações agrícolas nos países do sul da Europa.

O mau trato dos animais, como acontece nos aviários e nas produções de suínos, e a produção de milho industrial pelas grandes corporações para produzir biocombustível constituem umas das principais críticas à agro-industrialização. Para a substituir, uma ampla aliança formada por 35 organizações e associações, maioritariamente ligadas à assistência social, ambiental, animal e agrícola, de entre as quais se incluem a Bund, a ATTAC, a Nabu, a Oxfam e a Albert Schweitzer Foundation, das quais fazem parte muitos agricultores, propõe uma série de reformas governamentais de carácter ecológico.


As perspectivas de associações e organizações ambientais e agrícolas

«Nós já temos agro-indústrias suficientes!», disse o presidente da Associação de Produtores, Processadores e Comerciantes de Comida Orgânica (Bund Ökologische Lebensmittelwirtschaft), Felix Prinz zu Löwenstein, acrescentando que terão de se «juntar para exigir uma mudança de política relativamente à alimentação, renunciando à pecuária industrial que trata os animais como se fossem objectos». Felix Löwenstein não fica por aqui, afirmando que dever-se-á «renunciar à industrialização da agricultura que consome excessivamente os recursos disponíveis e prejudica o ambiente». Adverte, também, que «os alimentos industrializados, apesar de parecerem baratos, são, na verdade, muito caros, porque destroem o ambiente, a biodiversidade e o clima», defendendo, assim, «uma utilização sustentável dos recursos como a terra, a água e a biodiversidade, que constituem a base da oferta de alimentação», e exigindo «comida que mereça ser chamada de comida e cujo preço reflicta a verdade ecológica».

Felix Löwenstein referiu, ainda, o que para todos aqueles manifestantes deve ser o futuro da agricultura: «um sistema de agricultura baseado na ecologia e nos agricultores, e não na agro-indústria que opera segundo os interesses do mercado de exportações». Para si, a UE não deve distribuir fundos agrícolas indiscriminadamente mas antes direccionar o dinheiro dos contribuintes para beneficiar a agricultura que respeita a ecologia e o meio ambiente. Neste sentido, afirma que «a nossa ministra da agricultura [alemã], IIse Aigner, deve fazer o máximo em Bruxelas para alterar radicalmente a política de alimentação e assegurar que a reforma da política agrícola incorpora a estratégia verde defendida pelo comissário Ciolos» − ex-ministro da agricultura romeno e actual comissário europeu da agricultura, conhecido por ser um defensor da segurança alimentar e da preservação ambiental. Na verdade, Felix Löwenstein teme que as propostas de Ciolos percam importância e saiam da agenda europeia.

Interessa também atentar às declarações do presidente da Federação do Meio Ambiente e da Conservação da Natureza (BUND), Hubert Weiger, que, diante da chancelaria, referiu que «por trás da bela aparência das montras de carne, esconde-se o sofrimento dos animais que vivem num regime de constante engorda, prejudicando também o meio ambiente». Hubert Weigar conclui o seu discurso apelando ao governo federal para «garantir que as pequenas explorações agrícolas sejam encorajadas em detrimento das “fábricas de animais”».

Os produtores de leite, que participaram empenhadamente nesta manifestação, têm visto a sua situação agravar-se, apesar das greves e das várias demonstrações de descontentamento em Bruxelas. Segundo Johanna Böse-Hartje, que integra a Associação de Produtores de Leite Alemães (Bundesverband der Deutschen Milchviehhalter), «os políticos estão a adoptar medidas de liberalização, caminhando para a destruição de culturas agrícolas em todo o mundo». Para si, a aliança alcançada no dia 19 de Janeiro, demonstra que as suas exigências para um mercado regulado e para a revisão da política agrícola «têm tido um impacto positivo na sociedade». Acrescenta, ainda, que, «se os agricultores e os cidadãos lutarem pela reforma na política agrícola, poderemos manter as nossas explorações agrícolas e assegurar a produção de comida saudável».


O impacto da política agrícola europeia nos países mais pobres

As organizações da igreja Pão para o Mundo (Brot für die Welt) – uma voz colectiva cristã de mudança e desenvolvimento − têm chamado a atenção para as repercussões da política agrícola europeia no desenvolvimento das economias emergentes. Klaus Seitz, o líder político desta voz colectiva, afirmou que «as actuais políticas agrícolas europeias ameaçam os meios de subsistência de muitas famílias rurais em países pobre». Para si, «aumentar a produção agrícola e o volume de exportações não atenua a fome que existe». Na verdade, acrescenta, tem o efeito contrário, queixando-se que já existem «situações suficientes de pessoas a passar fome» e que «os frutos do trabalho agrícola não beneficiam toda a humanidade». Klaus Seitz, referindo o lado negativo das exportações alemãs, afirmou também que «mais de dezassete milhões de hectares estão a ser usados para responder à procura de soja, a qual é necessária para a produção de leite e de carne, em detrimento da produção local de alimentação e da preservação da natureza».

Não assumindo qualquer responsabilidade pelo impacto negativo das políticas agrícolas europeias nos países mais pobres, Ilse Aigner, ministra da agricultura da Alemanha, e Silva Gaziano, Director Geral do Programa Mundial de Alimentação (programa da FAO), declararam a sua intenção de começar a investir mais na agricultura dos países em desenvolvimento, explorando o seu potencial agrícola em consonância com a protecção ambiental e climática. Justificaram esta declaração de vontade com a necessidade de combater a fome e a pobreza no mundo, apoiando os pequenos agricultores.

Ilse Aigner, questionada sobre as críticas de que tem sido alvo, disse que «qualquer pessoa que pede uma nova política agrícola tem que olhar para o que a Alemanha já fez», acrescentando que a Alemanha está na «“ecologização” da agricultura mais longe do que a maioria dos países da Europa».


A actuação da banca e a fome

Por fim, falta referir uma das principais reivindicações da manifestação do passado dia 19 de Janeiro: pôr cobro à especulação financeira com as commodities agrícolas, para a qual muito contribuem alguns bancos alemães. Esta especulação é responsável pela intensa flutuação dos preços dos alimentos, que provoca a fome em muitos países subdesenvolvidos. A este respeito, o presidente da Acção Agrária Alemã (Deutsche Welthungerhilfe), Bärbel Dieckmann, afirmou que a «especulação contribui claramente para a volatilidade dos preços, aumentando as situações de fome, especialmente nos momentos críticos». Partilhando as mesmas preocupações, Thilo Bode, o chefe de uma organização de consumidores chamada Foodwatch, acusou alguns bancos de serem «cúmplices da fome em países subdesenvolvidos».

O Deutsche Bank, pela voz do Co-CEO Juergen Fitschen, contrariou todas estas acusações, argumentando que os estudos que mandou realizar não apresentaram provas convincentes de um relacionamento entre os investimentos nas commodities agrícolas e a fome no mundo. Juergen Fitschen diz ainda que os derivados agro-pecuários desempenham um papel importante no comércio global, o que justifica que o Deutsche Bank continue a oferecer instrumentos financeiros relacionados com os produtos agrícolas.

Ainda assim, a indignação entre a opinião pública começa a dar alguns resultados, como se pode observar pelo anúncio de algumas instituições financeiras, como o Commerzbank, de retirada de investimentos relacionados com produtos alimentares. Será este o princípio do fim das práticas especulativas com os produtos agrícolas? Grande parte da resposta residirá, certamente, na capacidade de mobilização e na persistência dos que se opõem a estas práticas.


Publicado no jornal afolha, em 10/02/2013

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Clubismo

Costuma-se dizer que, na nossa vida, o clube a que pertencemos é das únicas coisas que fica para sempre. De facto, excepto durante a infância e, talvez, adolescência, mudar de clube é um sacrilégio. Assim, uma pessoa que muda de clube não deve ser levada a sério.

Eu, que me visto de verde, face ao descalabro de uma equipa de futebol que apenas se poderá salvar se estiver atenta às aulas do Professor Jesualdo Ferreira, mantenho a minha alma cristalinamente leonina. Nem o fim da equipa de futebol atenuaria o verde carregado das minhas vestes. E a convicção, essa, é a mesma na vitória e na derrota. Nestas matérias não é a razão que impera – digam o que disserem, aconteça o que acontecer, o Sporting é inalcançável.

Todavia, respeito todos os outros clubes e os respectivos adeptos. Estou convencido que não existe nenhum motivo para um adepto fervorosamente portista ter mais orgulho no seu clube do que um adepto que mantenha intacta a sua alma salgueirista. Face à eterna paixão clubística, a dimensão e as conquistas são aspectos menores.

Se todos fossem do clube que vence mais, que mais títulos conquista, desaparecia a competição. É graças àqueles que se entregam de alma e coração a um clube pelo que este é e não pelo que tem, colocando de parte os aspectos materiais da soma de um conjunto de taças e troféus, que o futebol é tão magnificamente colorido.

Se todos vestíssemos a mesma cor, o futebol seria entediante. Por isso, homenageio aqui todos aqueles que se casaram por convicção e não por conveniência.

Publicado no ptjornal, em 20/01/2013
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cinema: um antídoto

Apesar de o aumento do IVA ter tornado uma ida ao cinema num programa caro, como acontece com muitas outras coisas, ainda sou daqueles que o pode fazer. Sou um leigo no que respeita à sétima arte, no entanto, quando vejo um bom filme, sinto que tirei um enorme proveito do tempo despendido em frente ao ecrã.

Das três últimas vezes que saí do cinema, saí completamente absorvido.
No primeiro destes três filmes, saí absorvido pelo poder avassalador das paixões e das desilusões amorosas, capazes de levar a natureza humana à sua própria extremidade e, por vezes, ultrapassá-la, fazendo com que os seus equilíbrios se desmoronem sobre o abismo da insanidade. Anna Karenina, realizado por Joe Wright e baseado na obra de Leo Tolstoy, é uma viagem ao íntimo de uma mulher que terá que escolher entre continuar uma vida monótona e, até, entediante, ou aventurar-se numa sociedade conservadora que não tolera qualquer desvio do status quo.

No segundo filme, saí absorvido pela brutalidade e pela magnanimidade que caracterizam o ser humano. Ao mesmo tempo que é capaz de actuar impiedosamente na prossecução dos seus objectivos e ser indiferente ao sofrimento alheio, é também capaz de mostrar todo o seu esplendor quando o amor o põe à prova ou quando se entrega de corpo inteiro aos valores em que acredita. Neste segundo ponto, os espectadores têm uma boa demonstração do particular altruísmo que caracteriza um revolucionário. Os Miseráveis, a obra-prima de Victor Hugo e agora transposto para cinema por Tom Hooper, é o musical que mais gostei de ver até hoje, apesar da arriscada decisão de pôr o Russell Crowe a cantar – porém, quando se é um dos melhores actores da actualidade, muito dificilmente se faz má figura, seja em que papel for.

Na terceira ida ao cinema, que foi no passado Sábado, saí absorvido pelo casamento entre a fantasia e o fascinante instinto de sobrevivência que partilhamos com todos os outros animais, como nos é demonstrado por um jovem rapaz indiano e por um tigre de bengala adulto. Uma verdadeira odisseia onde Pi – assim se chama o rapaz – enfrenta o desafio hercúleo de sobreviver no meio de um deserto de água salgada, tal como, outrora, havia acontecido com Ulisses. Através deste magnífico filme realizado por Ang Lee, baseado num livro de Yann Martel, compreendemos que a fantasia é um dos melhores antídotos contra as amarguras da vida.

Enfim, perante o relatório do FMI encomendado para Portugal, que, face à austeridade brutal que preconiza, representa uma enorme contradição com o que o próprio FMI disse há pouco tempo atrás, quando admitiu que os seus modelos (pró-austeridade) estavam errados, o melhor que há a fazer para manter o ânimo é consumir cultura, seja qual for a sua forma de expressão.

Publicado no ptjornal, em 13/01/2013