terça-feira, 21 de setembro de 2010

As tropas do além

As tropas do além já não existem. Desfizeram-se em certezas e a cada soldado foi dada uma reforma singela e um moinho. Alguns escolheram um moinho de água, outros um moinho mouro e outros ainda um moinho que não era bem um moinho.
É o realizar de um sonho para cada um daqueles homens que um dia foram anjos. Combateram ferozmente durante muito tempo, dedicaram muitos momentos da sua vida a contemplar aquilo que agora conseguiram, respiram o sonho de experiência feito.
Brados, outrora um anjo comandante, é um homem de barba e cabelos curtos e grisalhos, de estatura média e entroncado pelos infinitos combates a que foi sujeito, a sua boca há muito se mantém serrada pelos tão assustadores massacres a que os seus olhos assistiram, os quais se tornaram cinzentos pela aridez dos seus sentimentos. Interroga-se a cada instante se terá perdido a ternura, não sabe aquilo que sente, não consegue codificar o seu estado de alma.
Brados foi um dos mais tenazes soldados do além, chegou a comandante pela bravura demonstrada no sangrento campo de batalha. Trouxe consigo dezenas de chifres arrancados aos demónios que matou para eternizar a memória da sua incontestável coragem e ousadia. Hoje, sofre por não conseguir esquecer aquilo que viveu, por não conseguir olhar o futuro, sofre do síndrome “ausência de sonhos”.
Se Brados atravessa o mais negro momento da sua vida, imagine-se o estado de alma de outros homens que um dia alinharam nas tropas do além. Outros homens psicologicamente menos fortes que Brados. A paz trouxe a agonia aos ex-combatentes!
Quando se assina um armistício, quando um dos lados se rende ou, por e simplesmente, deixa de existir, diz-se que a guerra acabou. Não é verdade. A guerra só acaba aquando todos os que nela participaram jazem mortos, sejam vencedores ou derrotados. Para quem viveu sobre a morte iminente, a guerra é sempre a perder.
Brados é realmente um homem de raras qualidades. Veja-se que ultrapassou os tormentos da memória, buscando o presente sem pensar no futuro. "Presente é vida, futuro é morte", por estranho que pareça esta tornou-se a máxima de cada acção por ele protagonizada. Neste momento, prepara um banquete na gruta dos esquecidos, convidou todos os seus camaradas de guerra e, sabendo que a grande maioria não conseguiria sequer desligar-se dos tormentos da memória, pediu a Deus que concedesse o mínimo a que têm direito, um apagão cerebral. Assim, na gruta dos esquecidos, Brados delicia-se ao ver todos os seus camaradas ainda vivos reunidos e a comer sobre um apetite feroz.
Na vida real, existem memórias que não se apagam. Algumas delas constituem uma sentença perpétua para quem as viveu. O mínimo que Deus lhes pode dar é um lugar no paraíso.