sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um encontro com Henry

Custa ver um excelente cozinheiro, como o António, preso a um telefone a vender produtos que ele próprio não consome nem aprecia. Em vez de estar numa cozinha, pondo ao serviço o melhor das suas aptidões, está ao telefone a ganhar a vida. Temos, portanto, um mau vendedor no lugar de um, presumível, bom chefe de cozinha.

Enquanto pensava nisto, fui abordado por uma rapariga no meio de uma avenida barulhenta e poluída, que me queria fazer um inquérito sobre os meus hábitos alimentares. A cara dela não me era estranha e acabámos por descobrir que tínhamos amigos em comum – era a Rita, conhecida pelo seu talento especial para o ballet, que pratica desde pequenina. No entanto, anda a fazer inquéritos para ganhar a vida. Temos, portanto, uma inquiridora no lugar de uma excelente dançarina.

Continuei a caminhar e, quando olhei para o relógio, decidi que estava na hora de ir ter com o Henry. Não podia chegar atrasado àquele encontro e não queria repetir para mim próprio, pela enésima quarta vez, que não podia chegar constantemente atrasado a todo o lado. Ainda para mais, aquela seria uma oportunidade única para estar com aquele ilustre senhor.

Apanhei um autocarro rumo à Praça da Memória. Quando cheguei, apressei-me a ir comprar tabaco a um quiosque ali perto. Lá estava o André a vender coisas para ganhar a vida. Tive a felicidade de um dia o ouvir tocar guitarra portuguesa – tocava como as sereias cantam. Temos, portanto, um vendedor cabisbaixo no lugar de um exímio guitarrista.

Quando cheguei à porta do local combinado, resolvi, antes de entrar, ligar à Francisca, para saber se a entrevista daquela manhã lhe tinha corrido bem. Felizmente, correu muito bem e, finalmente, a Francisca encontrou um emprego que lhe permite sustentar o seu pequeno Diogo. Vai trabalhar para uma grande consultora, o que lhe permitirá ter o rendimento suficiente para viver dignamente com o seu filho. Como todos nós, tinha que ganhar a vida. Nunca vi ninguém ensinar tão bem com a Francisca. Foi minha colega de curso e era a ela que todos recorriam quando tinham dúvidas. Além disso, gostava de investigar, mas teve o azar de nascer num país onde, para se fazer investigação, é preciso ser-se capaz de tocar com o nariz na nuca. Temos, portanto, uma consultora esforçada no lugar de uma professora e investigadora brilhante.

Finalmente, abri a porta e desci as escadas empoeiradas daquele sítio que conhecia bem, apesar de nunca lá ter ido. Quando cheguei à cave, um empregado vestido a rigor recebeu-me de uma forma muito familiar e encaminhou-me para uma pequena sala onde já estava Henry David Thoreau, um homem sábio do século XIX.

Entre copos e profundas baforadas, a conversa eternizou-se. De facto, quando estamos lado a lado com um ilustre, ouvir torna-se num prazer imensurável. A maneira como me falava da importância de proteger e preservar a natureza impressionou-me muitíssimo, pois, para um homem que viveu num tempo onde essa questão era desprezada – ainda hoje o é em grande parte do mundo –, é mais uma constatação de que há quem viva à frente do seu tempo.

Quando Henry me pediu que contasse coisas sobre o meu país, falei-lhe, após orgulhosamente dissertar sobre quase nove séculos de aventuras e desventuras, de um governo que tem um primeiro-ministro que, na verdade, é um fantoche, que tem um ministro de seriedade muito duvidosa, que é o verdadeiro primeiro-ministro, e que tem um ministro das finanças que é um agente ao serviço de interesses externos – como se demonstrará quando ocupar um belíssimo lugar numa qualquer instituição internacional.

Henry não ficou minimamente surpreendido. De forma particularmente serena, disse-me que a única forma de lutar contra isso é através da desobediência civil. Explicou-me o que isso significava para ele e disse-me, olhos nos olhos, que “a única obrigação que tenho é fazer a toda a hora o que considero certo.”

Na verdade, não tenho a coragem nem a irreverência de um homem que, para se libertar do jugo dos que têm por hábito sentarem-se sobre os demais, foi preso e isolou-se num bosque para viver sob um regime de auto-suficiência. No entanto, lá vou tentando libertar-me das cordas que, qual marioneta, me controlam os movimentos.

Falei-lhe também da situação de amigos e conhecidos, que é também a minha. Muitos no desemprego, outros tantos a fazer o que não gostam de forma a ganharem a vida, o desperdício de talento que transborda e é absorvido por outros países. Enfim, a desgraça de um país.

Após um silêncio construtivo, Henry perguntou-me “como podemos tornar o nosso ganha-pão poético?” Pensei durante algum tempo e, quando me preparava para responder, de forma subtil, que isso seria lírico, ele disse “é que, se não for poético, não é a vida que ganhamos, mas morte”.

Que força tinham aquelas palavras. No entanto, sabia que aquilo que sentia naquele momento se evaporaria, em parte, com o tempo, tal como quem sai de uma sessão de cinema fantástica cheio de novas energias que, com o passar das horas, se vão dissipando. Contudo, continuo a fazer um esforço para integrar aquela máxima em algumas das minhas decisões – mesmo que muito ao de leve.

Foi uma conversa de tal modo enriquecedora que, certamente, inspirar-me-á em muitos momentos. Principalmente, nos momentos em que for invadido pela monotonia, onde me lembrarei do seu olhar penetrante, aconselhando-me a agir de forma a “nunca viver uma única hora insignificante”.

Publicado no jornal online ptjornal, em 16/12/2012

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sobre o Natal

− É uma pena que esta luz altruísta nasça nestes dias e morra nos dias seguintes…
− Ainda assim, nasce. Natal é isso mesmo: nascer.
− Mas é uma vida curta. Não resiste à rotina dos dias. É uma espécie de utopia que acontece mas que é interrompida pelo acordar da realidade.
− Pelo menos, é uma oportunidade única de sentirmos a utopia. Se não houvesse Natal, seria uma utopia como todas as outras.
− E acontece porquê? Não somos nós que fazemos essa utopia acontecer? Se se desvanece sempre, é porque o Natal é uma espécie de hino à hipocrisia.
−Não! Para se desvanecer tem que ter nascido. E se nasceu, é porque temos dentro de nós, todos os dias, uma luz altruísta. Simplesmente, o Natal serve como uma espécie de chamamento dessa luz altruísta que vive em cada um de nós. Se não houvesse Natal, não haveria esse chamamento. Seria pior. A hipocrisia está no que vem a seguir.
− Então, os efeitos desse chamamento são demasiado efémeros. É como aquele senhor que vai à missa, que ora a Deus e que sai da igreja flutuando sobre a leveza da comunhão para, instantes depois, voltar a cingir-se aos prazeres da carne. Se calhar, o Natal serve para que, ao sentirmos essa energia altruísta, não nos sintamos tão mal por sermos carne o ano inteiro. É como um analgésico espiritual.
− Se fôssemos, pura e simplesmente, carne, essa luz não existiria. O Natal é a prova que somos seres espirituais. Se não o fôssemos, o Natal não existiria.
− E os presentes? É um sinal da espiritualidade? Ou é um sinal da manipulação, mais uma vez, do espírito pela carne? Como se a carne, ao perder um pouco do seu espaço, gritasse “presente!”.
− Os presentes podem transformar-se nessa manipulação mas não é sempre assim. Dar um presente a alguém poderá significar que o carregas todos os dias no coração, servindo como uma espécie de transmissão da memória. É uma demonstração material do teu afecto. Um verdadeiro presente é como uma fotografia da espiritualidade que une duas pessoas, de modo a que, quem o recebe, possa recordar o outro sempre que vê, ouve ou toca esse presente. E assim, é o afecto que grita “presente!”.
− Seria bom que fôssemos só energia. Sem corpo, sem rosto, sem cor. Apenas uma luz brilhante que não se alimentasse de carne, nem de vegetais, nem sequer de água. Oxalá que à vida se siga um espaço celestial onde cada um de nós é uma luz reluzente, tão indispensável como todas as outras, formando a mais bela das complementaridades. Por aqui, apenas nos resta suportar a competitividade carnal.
− Então, desfrutemos do Natal, pois ele permite que essa luz altruísta despolete da carne, aliviando a dor e sarando muitas das feridas que acumulámos durante o ano.

Numa conversa, que se repete por séculos e, quem sabe, por milénios, duas pessoas, bem sentadas e aquecidas pelo lume de uma grande lareira, experimentam a eternidade. Assim é a luz – eterna!


Publicado no jornal online ptjornal, em 23/12/2012

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ontem os nossos pais, hoje o Reichstag

Até uma determinada idade, o nosso futuro é decidido pelos nossos pais, que discutem, debaixo do mesmo tecto onde vivemos, o que será melhor para nós. A sua principal preocupação é preparar-nos para, um dia, alcançarmos a nossa independência, através da capacidade de lutar contra as vicissitudes da vida. Para isso, deixam-nos um conjunto de ferramentas e estruturas, de entre as quais se destaca a democracia – provavelmente, o seu mais precioso legado.

Actualmente, quando o nosso futuro nos é entregue, é instantaneamente manipulado por pessoas que não conhecemos nem nunca vimos. Subitamente, a democracia desaparece e, quando vamos à sua procura, encontramo-la a ser mastigada em Bruxelas para, depois, ser engolida e digerida em Berlim.

A questão não é ser europeísta ou antieuropeísta – isso seria desviar a atenção do essencial. A questão é ser democrata ou antidemocrata, ou seja, entre escolher uma Europa que represente todos os seus cidadãos ou uma Europa que represente apenas parte dos mesmos. De facto, à excepção do parlamento europeu, que tem poucos poderes, não existe verdadeiramente democracia nas instâncias europeias.

Homens e mulheres a quem não concedemos legitimidade democrática decidem, à porta fechada, sem qualquer cobertura jornalística, o nosso futuro. Para tentar saber o que se passa nas reuniões dos líderes europeus, temos que observar as conferências de imprensa organizadas à saída. Porém, não ficamos a saber muito, uma vez que, ao ouvirmos os dirigentes europeus falar sobre o que se passou nestas reuniões, parece que assistimos à leitura repetida do mesmo ditado. Podemos, ainda, recorrer aos comunicados de imprensa, contudo não saberemos mais do que as verdades oficiais.

As mentes mais imaginativas estarão, nesta altura, a projectar a instalação de microfones escondidos nas salas destas reuniões. Nada de novo: em 2003, foi descoberto um sistema de escuta clandestino nas salas de reuniões do Conselho Europeu, tendo os serviços de segurança belgas, após uma longa investigação, suspeitado que teria sido a Mossad – os serviços secretos israelitas – a montar aquele sofisticado sistema de escuta. No entanto, como é tradição neste tipo de casos, o caso foi arquivado.

A única forma para sabermos, realmente, o que se passa nestas reuniões é através das notas Antici. Este nome deve-se a um diplomata italiano, já falecido, que nos anos setenta escreveu um conjunto de relatórios que transcrevem, quase completamente, as conversações entre os dirigentes europeus nas cimeiras. Actualmente, essa missão é desempenhada por um funcionário do secretariado-geral do Conselho, denominado debriefer, que dita aos diplomatas nacionais o que se diz nas cimeiras. Note-se que, como seria de esperar, as Notas Antici não são publicadas. No entanto, os autores da obra Circus politicus, Christophe Deloire e Christophe Dubois, conseguiram obter algumas notas referentes aos anos de 2010 e 2011, onde está plasmado o pânico dos dirigentes europeus perante a crise financeira e as suas ideias para a contrariar – as ideias verdadeiras e não as ideias oficiais.

As notas Antici permitem percepcionar o oceano que separa os interesses alemães dos interesses dos países do sul da Europa. Permitem, por exemplo, compreender que a abertura comercial da UE à China corresponde aos interesses alemães de exportarem determinados produtos para a China, uma vez que o mercado do sul da Europa já não os satisfaz. Esta mesma abertura contraria os interesses de países como o nosso, especializados, por exemplo, na indústria têxtil, alvo de uma concorrência devastadora por parte dos têxteis chineses de má qualidade e baixo preço, graças a uma mão-de-obra desprovida dos mais elementares direitos laborais.

Ontem, o nosso futuro era discutido pelos nossos pais, mesmo ao nosso lado, hoje, o nosso futuro é, essencialmente, discutido no Reichstag. É assim a vida de um jovem adulto português…

Publicado no jornal online ptjornal, em 09/12/2012

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Redes sociais ao serviço de quem?

O advento das redes socias, pela sua intensidade e rapidez, tornou-se num motivo de elaboração de teses, de debates alargados e do desenvolvimento de toda uma indústria que se sustenta a partir das mesmas. Para compreender os seus benefícios e malefícios, em toda a sua amplitude, serão precisos mais alguns anos de avaliação e de amadurecimento deste verdadeiro fenómeno do novo século.

A informação que se tornou disponível a partir, por exemplo, do Facebook, contribui decisivamente para a actividade de muitas empresas e também do Estado, designadamente para os serviços secretos.

Uma campanha de sensibilização realizada em Bruxelas demonstra bem os perigos que as redes socias podem representar para cada um de nós. Nesta cidade, foi montada uma tenda numa praça, onde um vidente convidava as pessoas a entrar para mostrar como era capaz de saber tudo sobre as suas vidas. Sentados frente a frente, cada uma das pessoas ficava aterrada com o facto de aquele senhor ser capaz de desvendar tudo sobre elas. Exactamente no momento em que cada um dos convidados olhava incrédulo para aquele senhor que parecia possuir poderes sobrenaturais, caía uma cortina que escondia quatro hackers ao computador a desvendar tudo quanto era possível. Moral da história: tenha cuidado com a informação que coloca na internet. Este vídeo pode ser visto no Youtube, bastando escrever “vidente advinha com base nas redes sociais”.

Actualmente, muitos correctores analisam com modelos matemáticos a informação exposta nestas redes, o que lhes permite compreender as tendências gerais e, assim, exponenciar os respectivos lucros. Segundo a IBM, a utilização em massa do Google, Facebook, Twitter, entre outros serviços on-line, gera 2,5 milhões de terabytes por dia, o que constitui um volume de informação impossível de conceber. Ao passo que o nosso cérebro é incapaz de traduzir grandes quantidades de informação, o progresso da informática permite que determinados computadores possam traduzir as tendências dominantes a vários níveis, desde os gostos musicais aos hábitos alimentares, passando pelas eleições. A campanha de Obama, por exemplo, averiguava continuamente as reacções nas redes sociais a cada palavra do presidente, procurando perceber o que o presidente deveria ou não dizer.

Especialistas de todas as áreas, desde sociólogos a informáticos, procuram beneficiar deste volume de informação. No entanto, é no sector financeiro, onde a informação é vital, que se consegue tirar maior proveito. Há cinco anos atrás, apenas 2% dos fundos de investimento analisavam as mensagens no Twitter para a sua tomada de decisão, ao passo que, actualmente, este valor já chega aos 50%!

Este autêntico fenómeno levanta um conjunto de questões, designadamente legais, uma vez que a legislação está atrasada em relação à evolução tecnológica. Veja-se o que aconteceu nos EUA, onde um conjunto de activistas apresentou uma queixa contra o Estado devido a um programa governamental que, pretendendo detectar riscos para a segurança nacional, vigiava as redes socias.

Outra das ameaças relaciona-se com a manipulação. Bastará bombardear uma qualquer rede social com spams, onde seja defendida uma determinada opinião sobre uma empresa, para, artificialmente, passar uma ideia de optimismo sobre a mesma ou, pelo contrário, manchar a sua reputação.

Em suma, cresce a preocupação com as consequências a longo prazo do funcionamento das redes socias. O próprio Tim Berners-Lee, que inventou a World Wide Web (rede mundial www), está muito preocupado com a exploração abusiva dos dados pessoais a partir das redes sociais. O melhor mesmo é seguir o seu conselho: muito cuidado com o que se coloca na rede.

Pessoalmente, lá vou sobrevivendo na pré-História, uma vez que continuo a não ter conta no Facebook nem no Twitter. Provavelmente, Tim Berners-Lee diria que não será preciso ir tão longe...

Publicado no jornal online ptjornal, em 02/12/2012

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A novela de uma greve (II)

Na semanada passada, quando escrevi um artigo intitulado “novela de uma greve”, não adivinhava que se seguiria um episódio tão novelesco como o anterior. Desta vez, apenas a PSP, tristemente, se manteve no cenário, uma vez que os manifestantes saíram de cena para dar lugar aos Ministros Miguel Macedo e Miguel Relvas e à RTP.

Em causa está o acesso que a PSP teve às imagens não editadas da RTP relativas à manifestação de 14 de Novembro. Este acontecimento originou um pedido de esclarecimento da comissão de trabalhadores da RTP ao Ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, e a demissão do director de informação da estação pública, Nuno Santos, que fez questão de sublinhar, desde a primeira hora, que não facultou imagens não editadas (ou em bruto) à PSP.

No pedido de esclarecimento dos trabalhadores da RTP, interroga-se quem terá pedido para aceder às imagens em causa, a quem foi dirigido esse pedido, quantos elementos da PSP visualizaram essas imagens, quantos DVDs foram entregues à polícia, entre outras questões relevantes. A comissão de trabalhadores da estação pública manifestou, ainda, o receio de ser “amordaçada” numa altura em que o governo se prepara para criar nova legislação sobre a comunicação social.

A eventual divulgação, através da direcção de informação da RTP, das imagens em bruto da manifestação constitui uma violação do Estatuto do Jornalista. Segundo este diploma legal, os directores de Informação, os administradores, ou qualquer pessoa que integre os Média, não podem, excepto se tiverem o aval do jornalista envolvido, divulgar as suas fontes de informação, qualquer que seja o seu formato. Desta forma, a única maneira que a PSP tem para poder aceder a estas fontes de informação é através de um mandato judicial.

No entanto, Miguel Macedo afirmou que “todas as entidades têm o dever de colaborar, nos termos da lei, com as autoridades de investigação criminal, tendo em vista a descoberta da verdade". Por esta razão, o Ministro da Administração Interna considera existirem dúvidas relativas à legitimidade do acesso às imagens por parte da PSP, uma vez que esta assume poderes de investigação criminal. Assim, o Ministro irá pedir um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.
Note-se que, de acordo com o Código de Processo Penal, o acesso e apreensão das provas levadas a cabo por órgãos de polícia criminal requerem uma autorização por despacho da autoridade judiciária. A excepção, como já referi, é se os próprios jornalistas consentirem o acesso a essas possíveis provas.

Esta novela ainda não chegou ao fim. Existem vários aspectos que não conhecemos e a obscuridade de que este caso se reveste não dá confiança alguma ao trabalho da polícia e do governo. Uma vez que não houve mandato judicial para o acesso às imagens não editadas, nem autorização dos jornalistas que as produziram, precisamos de saber o seguinte: quem fez o pedido para que estas imagens fossem entregues à polícia; que polícia é esta que serve para defender a lei e não a cumpre; qual a razão para a administração da RTP colocar em causa a Direcção de Informação, abrindo ao conhecimento público as guerras internas desta empresa; e, finalmente, quais são as responsabilidades, neste caso, dos Ministros Miguel Macedo e Miguel Relvas.

E, já agora, faço mais uma pergunta: porque é que tudo o que diz respeito a suspeitas, fraudes e corrupção envolve o Ministro Relvas?

Publicado no jornal online ptjornal, em 29/11/2012

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Verbum Die (XXI)

Abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. A sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. Para o vulgo, o bom sucesso equivale à supremacia. A vítima dos logros do triunfo, desse menecma da habilidade, é a história. Só Tácito e Juvenal se lhe opõem. Existe na época e sente uma filosofia quase oficial, que envergou a libré do bom êxito e lhe faz o serviço da antecâmara. Fazei por serdes bem sucedido, é a teoria. Prosperidade supõe capacidade. Ganhai na lotaria, sereis um homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nascei bem-fadado, não queirais mais nada. Tende fortuna, que o resto por si virá; sede feliz, julgar-vos-ão grande. Se pusermos de parte as cinco ou seis excepções imensas que fazem o esplendor de um século, a admiração contemporânea é apenas miopia. Duradora é ouro. Pouco importa que não sejais ninguém, contanto que consigais alguma coisa.

O vulgo é um narciso velho, que se idolatra a si próprio e aplaude o vulgar. A faculdade sublime de ser Moisés, Esquilo, Dante, Miguel Ângelo ou Napoleão, decreta-a a multidão indistintamente e por unanimidade a quem atinge o alvo que se propôs, seja no que for. Que um tabelião se transforme em deputado; que um falso Corneille componha Tiridates; que um eununco chegue a possuir um harém; que um Prudhomme militar ganhe por casualidade a batalha decisiva de uma época; que um boticário invente solas de papelão para o exército de Samba e Mosa, e, vendendo-as por couro, consiga arranjar uma fortuna de quatrocentos mil francos de rendimento; que qualquer pobretão case com a usura e a faça parir sete ou oito milhões, de que ele é pai e ela mãe; que qualquer pregador arranje a ser bispo, à força de falar pelo nariz; que o mordomo de qualquer casa grande saia dela tão rico, que obtenha a pasta das Finanças, os homens chamam a isso Génio, do mesmo modo que chamam Beleza à cara de Mousqueton e Majestade à aparência de Cláudio. Confundem com as constelações do abismo as estrelas que os gansos imprimem com as patas na superfície mole do lodaçal.

Victor Hugo, in "Os Miseráveis"

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A novela de uma greve

A greve geral do dia 14 de Novembro de 2012 constituiu um acontecimento particularmente importante. Pela primeira vez, no presente século, foi organizada uma greve geral transnacional, apoiada pela Confederação Europeia dos Sindicatos. No nosso país, em Espanha, na Itália e na Grécia, homens e mulheres, empregados e desempregados, idosos e jovens, saíram às ruas para expressar a sua indignação com as políticas dos respectivos governos e com a linha “merkeliana” que a Zona Euro está a seguir. Este acontecimento tornou-se ainda mais particular com as manifestações de apoio aos países do sul ocorridas na Bélgica, no Reino Unido, em França e na Áustria.

Nos quatro países onde ocorreu, a greve foi um sucesso. Em Portugal, vimos uma das greves com maior adesão de sempre, acompanhada por manifestações em todo o país, com destaque para Lisboa, onde uma multidão saiu à rua. Cada vez mais, estas manifestações reúnem pessoas sindicalizadas e não sindicalizadas, que fazem parte de determinados movimentos sociais, outras que, não integrando nem sindicatos nem movimentos sociais, as fortalecem com a sua presença.

Infelizmente, o sucesso da greve geral foi abafado por um conjunto de pessoas que resolveram criar desacatos com a polícia em frente da Assembleia da República, apesar de muitos manifestantes, não sendo polícias, terem tentado e, por vezes, conseguido amenizar os actos daquele conjunto de desordeiros. Estive lá. Tentei fazer alguma coisa, assim como muitas pessoas como eu. Entre a esmagadora maioria dos manifestantes que lá estavam, questionava-se quem seriam aqueles que estão a estragar isto. Qual a razão de a polícia estar há mais de uma hora sem fazer nada?
Tentámos, sentámo-nos em cima da calçada para que não a esburacassem ainda mais, mas não foi possível.

A seguir, veio uma intervenção policial que manchou ainda mais a manifestação. Dizem que avisaram por megafone para que as pessoas dispersassem. Eu, como toda a gente com quem falei que esteve presente, não ouvi nada. Até a SIC, que tinha uma câmara ao lado do polícia com o megafone, se viu na necessidade de colocar legendas nas filmagens.

Por várias vezes, a polícia à paisana infiltrada em manifestações interveio em momentos onde um conjunto de pessoas recorria à violência, cortando pela raiz as suas intenções. Mas, naquele final de tarde, o mesmo não aconteceu. As ordens – não sei de quem – foram para que aqueles polícias ficassem sujeitos ao apedrejamento durante quase duas horas. Se foi para legitimar o que vinha a seguir, não sei.

O que é facto é que, quando a carga policial surge, os desordeiros que estavam à frente foram os primeiros a aperceberem-se e os primeiros a fugirem, resultando no espancamento policial dos que estavam atrás, apanhados de surpresa pela raiva que cada um daqueles homens que havia sido apedrejado durante horas carregava.

Lembro-me de correr a toda a velocidade, tendo perdido aqueles que estavam comigo. Quando fui ao encontro deles vi um senhor idoso a jorrar sangue pela cabeça abaixo e a chorar ao mesmo tempo. Afinal, quando se tem setenta anos a velocidade já não é a mesma.

Meti a mão ao bolso em busca de lenços que normalmente trago comigo, peguei em dois ou três e coloquei-os na ferida que o senhor tinha na cabeça e, enquanto o levava para os bombeiros ali perto, ouvindo os soluçares de uma pessoa que podia ser o meu avô, interrogava-me: existirá alguma razão para se bater violentamente num idoso que se manifesta pacificamente?


Publicado no jornal online ptjornal, em 18/11/2012

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Um Ensino Superior cada vez mais inferior

O grau de desenvolvimento de um país pode ser medido pela qualidade dos respectivos serviços públicos e, certamente, um dos mais importantes serviços públicos é o da educação.

Se olharmos para evolução ocorrida em Portugal desde os anos sessenta, alegramo-nos com os dados. Há cinquenta anos atrás, havia apenas 25 mil estudantes universitários, ao passo que, na década de 80, esse valor já havia crescido significativamente para mais de 80 mil. Ora, no ano de 2010, estavam matriculados 396.268 alunos universitários, aproximando Portugal da média europeia. Não há dúvida que o 25 de Abril trouxe o início de um processo de desenvolvimento substancial para o nosso país, espelhado não só na área da educação, como na área da saúde e do apoio aos mais desfavorecidos, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde e do Estado Social.

Infelizmente, vivemos um processo de contra-evolução em todas estas áreas. Não se podendo falar de todas, incidiremos este artigo no Ensino Superior.

Desde há alguns anos, o aumento desmesurado das propinas tem contribuído decisivamente para a degradação do ensino superior, uma vez que o abandono forçado de muitos estudantes universitários tem aumentado seriamente e o endividamento de outros tantos, por forma a concluírem os seus cursos, também. As propinas, estabelecidas em Portugal nos anos noventa, são hoje uma das principais fontes de financiamento do ensino superior e atingem no nosso país valores bastante superiores ao que acontece em muitos outros.

Por outro lado, as próprias instituições universitárias, alvo de cortes contínuos, têm vindo a perder a sua vocação para a investigação científica, factor fundamental para o bom exercício de uma qualquer universidade.

Actualmente, Portugal é um dos países da União Europeia que menos investe na educação: em 2010, o investimento na educação representava 5% do PIB, ao passo que, em 2012, este investimento ficou-se pelos 3,8%, valor francamente inferior à média da união europeia, que se encontra nos 5,5%.

Segundo dados da OCDE, relativos a 2009, o Estado português era responsável por 66% do financiamento ao ensino superior, valor muito inferior à média da União Europeia, que se situa nos 79%. Se, em Portugal, apenas 24% dos estudantes universitários são apoiados pelo Estado, em França esse indicador alcança os 53%, na Finlândia 71% e no Reino Unido 85%.

Mas existem mais indicadores demonstrativos da realidade do ensino superior português: as bolsas de estudo apenas cobrem um quarto das despesas totais dos alunos, o que explica o facto de um terço dos empréstimos bancários a estudantes universitários serem dirigidos a bolseiros.

E, para concluir esta dolorosa exposição de indicadores, segundo análises recentes, um estudante universitário custou, em média, 5.841 euros à sua família, enquanto o investimento público nesse aluno situa-se nos 3.601 euros. Ora, se compararmos estes valores com os restantes da União Europeia, percebemos que Portugal é um país que pouco financia a educação dos seus alunos, ao mesmo tempo que é um dos países que mais esforço financeiro, em termos de educação, exige às famílias – perto de um quinto dos rendimentos familiares são empregues nas despesas relacionadas com o ensino.

Em 2007, para responder ao parco investimento estatal na educação e à dificuldade dos pais em financiar o estudo dos seus filhos, criou-se uma linha de crédito, com apoio do Estado, para estudantes do ensino superior. O resultado, como os portugueses já perceberam em relação a tudo o diz respeito ao crédito, é o endividamento crescente dos estudantes e das respectivas famílias. Se no ano lectivo de 2004/2005 apenas 1,6% dos alunos recorria ao crédito para pagar os seus estudos, no ano lectivo de 2011/2012 esse valor alcançou os 4,9%. Desta forma, estima-se que cerca de 12.000 estudantes devam à volta de 200 milhões de euros à banca.

Imagine-se acabar o curso, enfrentar inúmeros obstáculos para encontrar emprego e, ao mesmo tempo, carregar o fardo da dívida. É esta a realidade de muitos à nossa volta.

As perspectivas pioram a cada dia. O orçamento do Estado para 2013 prevê cortar ainda mais na educação, o que já teve como consequência um protesto conjunto dos reitores das universidades portuguesas, inconformados com a barbárie que o governo pretende fazer.

Portugal deu nos últimos 35 anos um enorme salto em frente em matéria de educação, levantemo-nos, então, contra aqueles que querem que os próximos anos sejam de uma vertiginosa marcha atrás.


Publicado no jornal online ptjornal, em 11/11/2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Desilusão Versus Extremismo

No próximo dia 6 de Novembro, os norte-americanos irão optar entre dois distintos programas governamentais. A escolha é entre o programa de Barack Obama, um presidente que, neste primeiro mandato, se mostrou uma desilusão face às expectativas que gerou, e o progrma de Mitt Romney, um candidato cuja enorme riqueza se deve, essencialmente, à finança especulativa, à deslocalização de empregos e aos paraísos fiscais, nomeadamente as Ilhas Caimão. Neste ponto, é irónico constatar que os malabarismos do sistema financeiro norte-americano, que levaram a uma crise de dimensão astronómica, não impedem que um homem que as praticou possa, agora, candidatar-se à Casa Branca, afirmando que tem a melhor fórmula de resolver o caos. É ainda mais irónico constatar que essa fórmula contém em si os principios causadores da grande crise financeira. No entanto, como sabemos, os interesses financeiros manipulam diversas realidades, nomeadamente os órgãos de comunicação social.

Paul Ryan, candidato republicano à vice-presidência, delineou um programa a que Mitt Romney se associou entusisticamente, no qual a taxa fiscal máxima é reduzida para 25%, um minimo histórico nunca visto desde 1931, e as despesas miliatares significativamente aumentadas. Ou seja, o programa republicano pretende delegar à caridade as funções sociais do Estado, como seja a assistência médica aos mais pobres, que, caso fosse implementado, teria uma redução de 78%!
Este radicalismo de direita protagonizado pelos republicanos, embora Romney o tenha tentado disfarçar nos debates presidenciais, serve de esperança a Obama para a conquista do segundo mandato. De facto, a governação de Obama carece de grandes trunfos, apesar de o Presidente responsabilizar a maioria parlamentar republicana pela ausência das medidas que o eleitorado progressista espereva que adoptasse.

Sendo assim, num sistema bipartidário onde ambos os partidos carregam um conjunto de clientelas exigentes e insaciáveis, recai sobre os eleitores a escolha entre o mau e o menos mau. Porém, essa diferença é verdadeiramente substancial. Em bom rigor, uma vitória do partido republicano significa um acrescento de poder ao neoliberalismo, ao fundamentalismo cristão e à mentalidade belicista ocidental. E as consequências que isso traria para a Europa são expectáveis, como o fortalecimento da direita anti-islão.

Em suma, mais do que querer Obama na Casa Branca, não quero ver um ultra-conservador à frente da, ainda, super potência mundial.

Publicado no jornal online ptjornal, em 04/11/2012

domingo, 4 de novembro de 2012

O “bom” exemplo da Letónia

A Letónia, um dos três países bálticos, com uma população de dois milhões de habitantes e uma economia cujo principal produto de exportação é a madeira, é hoje um bom reflexo das medidas protagonizadas pelo FMI.

Após o rebentamento da bolha imobiliária em 2008, seguiu-se uma crise de financiamento da dívida, tal como aconteceu com muitos outros países ocidentais. O que veio depois é previsivel: um “acordo”, mascarado sob a palavra resgate, com o FMI.

Foi assim que, em troca de um montante de 7,5 mil milhões de euros, o FMI impôs um conjunto de medidas draconianas, apelidando-as de ajustamento orçamental – como se constata, a cantiga é a mesma. Ora, este ajustamento previa cortar 17% do valor da economia letã, em apenas dois anos. Resultado? A Letónia exprimentou a pior recessão económica que a Europa já viu, apenas comparável ao que aconteceu aos EUA nos anos da Grande Depressão. Vejamos: o PIB caiu 23% em dois anos; os salários baixaram entre 25% e 30%; o desemprego aumentou de 5% para 20%, ou seja, quadriplicou; o subsídio de desemprego foi reduzido; os impostos aumentaram; a criminalidade disparou; e, finalmente, quatro em cada dez familias ficaram numa situção real de pobreza. Enfim, um massacre a céu aberto.

Preve-se, para o presente ano, que a Letónia tenha um crescimento de 6%, o que serviu para que a directora do FMI, Christine Lagarde, afirmasse que a Letónia serveria como modelo europeu, significando que a Grécia, a Irlanda, Portugal e Espanha, teriam a mesma terapia de choque. Contudo, as razões para este crescimento prendem-se com o facto de o mesmo advir de um contexto de empobrecimento – note-se que não é por acaso que os países que apresentam taxas de crescimento mais altas são países em vias de desenvolvimento.

A Letónia viu partir 10% da sua população, um terço da sua juventude emigrar para criar riqueza num qualquer outro país, proliferarem habitações nos subúrbios de Riga com condições de higiene e segurança inexistentes. Ainda assim, foi dada como um caso de sucesso.

Seria interessante colocar aqueles senhores e senhoras arautos da austeridade, nem que fosse por uma semana, naquelas habitações, ou melhor, barracas de madeira, onde quem lá vive cultiva pequenos terrenos e pesca no rio Daugava em busca da sobrevivência. Ali, onde não há electrecidade, onde as temperaturas podem chegar aos 20 graus e onde outrora se guardavam as ferramentas agrícolas, dormem milhares de pessoas. É ali que esses senhores e senhoras deveriam dormir.

Publicado no jornal online "ptjornal", em 28/10/2012

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O feitiço do inevitável


Disseram-nos que era inevitável. Disseram-nos que, se não o fizéssemos, a sociedade iria ruir. Disseram-nos que era a única forma de impedir a tragédia. Ou apertávamos o cinto ou, por e simplesmente, desfalecíamos. 
Agora aqui estamos, de ossos esmigalhados por uma fivela que encontra sempre mais buracos para nos fazer encolher, até, talvez, nos fazer desaparecer de vez. Agora, ao espreitar pela janela, ao olhar para cada rosto cabisbaixo, ao sentir a pobreza passear-se de forma triunfante pelas ruas, percebo que já estou perante uma tragédia. Afinal, a inevitabilidade revelou-se o argumento do tirano. E não foi sempre assim?
Este é um país onde aqueles que lhe podem dar futuro estão, na sua maioria, no desemprego, às portas da emigração ou para além delas, ou num qualquer trabalho remunerado à chinesa. Este é um país onde aqueles que o endividaram, corromperam e violaram, estão, na sua posse senhorial, a exigir que apertemos ainda mais o cinto – talvez por acharem que somos seres invertebrados –, ou com belos empregos no estrangeiro, em instituições responsáveis pela crise global, ou, ainda, a estudar em Paris.
A hipocrisia é tanta, a falta de pudor tão aguda, que se torna difícil discernir o que está certo do que está errado. A poeira que nos atiram diariamente para os olhos, nomeadamente através dos média, faz-nos ficar confusos e atordoados – vivemos num autêntico caos!
Enquanto massa humana amorfa, teremos, necessariamente, que fazer alguma coisa. Viver sentado é muito mais doloroso que morrer de pé. A História é a melhor candeia para nos guiar nestes tempos obscuros, porque nos ensina o que os nossos antepassados fizeram em momentos semelhantes. Através dela sabemos que, se nos subordinarmos, viveremos até ao último dos nossos dias com uma coleira à volta do pescoço. Mas também sabemos que, se nos erguermos, somos demasiados para que nos possam impedir de viver com justiça.
E há mais uma coisa que a História nos conta: o renascimento surgiu das trevas.   

Publicado no jornal online "ptjornal", em 21/10/2012

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Há vida para além do velho continente

Portugal, como outros países da Zona Euro, vive um interregno doloroso. O seu destino poderá assumir uma de duas formas: ou acabará por sair da Zona Euro − posição sempre defendida por algumas personalidades, designadamente o economista João Ferreira do Amaral −, o que nos permitiria readquirir o controlo sobre a nossa moeda; ou beneficiará de uma mudança de postura da Alemanha, o elo mais forte da zona euro, traduzida num reforço da integração económica europeia e na consequente introdução de uma política de transferências monetárias dos países excedentários para os países deficitários.

Não deixa de ser curioso notar que estas duas soluções correspondam a duas situações antagónicas. Isto é, ou passamos a viver numa Zona Euro mais integrada ou, por e simplesmente, abandonamo-la.

Não obstante, tão ou mais importante que esta questão é a construção de uma estratégia económica adequada para Portugal, garantindo-lhe uma travessia bem-sucedida pelo século XXI. Para isso, teremos que identificar os sectores nos quais Portugal possua vantagens competitivas.

Apesar de ser um leigo na matéria relativa aos recursos do mar, estou convencido que poderíamos aproveitar muito mais o facto de possuirmos um enorme território marítimo. Contudo, é certamente muito difícil para um povo descapitalizado como o nosso realizar investimentos no mar, uma vez que estes investimentos requerem quantias muito consideráveis. Sendo assim, seria indispensável que o poder político criasse mecanismos de financiamento aos projectos mais prometedores relacionados com o mar.

O reforço dos melhores portos portugueses é também uma questão central, já que desfrutamos de uma posição geográfica estratégica, permitindo-nos almejar alcançar uma posição de grande referência nas rotas comerciais marítimas e, por consequência, no abastecimento de bens à Europa.

Uma coisa é certa: Portugal não está condenado a ser a ponta de Europa, uma vez que há vida para além do velho continente, como percebeu o infante D. Henrique.


Publicado no jornal online "ptjornal", em 14/10/2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Tout va très bien, Madame la Marquise

Se me pedissem para fazer a banda sonora de um filme sobre o actual Governo português, a música principal seria “Tout va très bien, Madame la Marquise”, uma velha música francesa recheada de humor. A letra desta música assenta num conjunto de conversas entre uma senhora nobre francesa, a Madame la Marquise, e os seus empregados que, perante a sua ausência, transmitem-lhe as novidades relativas ao seu “condado”. Ora, à medida que cada empregado vai contando uma desgraça, cada uma pior que a anterior, e a Madame la Marquise ficando cada vez mais espavorida, os empregados, após o anúncio de cada desgraça, clamam “… mas quanto ao resto, tudo vai muito bem Madame la Marquise.


O que este Governo faz é muito semelhante. Face às evidências de um país que a cada dia que passa se apresenta mais degradado, os nossos governantes mantêm um discurso completamente desfasado da realidade, insistindo em políticas que aceleram a degradação de Portugal. Tão inconscientes são os empregados da Madame la Marquise, como o Governo que nos desgoverna.


Contudo, felizmente, como escreveu o poeta Manuel Alegre, “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Constatámos precisamente isso no dia 15 de Setembro de uma forma histórica, num dia em que, como cantou Zeca Afonso, o povo saiu à rua.


Constatámos isso também no dia 5 de Outubro, o dia da nossa República, através da organização do Congresso das Alternativas na Universidade Clássica de Lisboa, reunindo um conjunto significativo de personalidades de todo o país. Ali foram discutidos, ao longo de um dia inteiro, diversos temas relacionados com as nossas vidas, onde a palavra foi entregue a quem quisesse acrescentar algo aos debates.


Na emblemática Aula Magna da Clássica, lotada de cidadãos activos e preocupados com o estado do país, levantaram-se diversas vozes, conhecidas e anónimas, em nome de um Portugal melhor, ou seja, em nome de uma vida melhor para os portugueses. Lá estavam homens e mulheres partidários e apartidários, integrados em movimentos sociais ou não, estudantes e reformados, trabalhadores e desempregados, todos em nome de uma única coisa – Dignidade!


Publicado no jornal online "ptjornal", em 07/10/2012

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

De Agosto à realidade

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No mês de Agosto, a grande maioria das pessoas afasta-se da realidade económica quotidiana, o que é perfeitamente natural, até por questões de sanidade mental. Ainda assim, numa altura em que o mês vai a meio, vale a pena deitar uma breve olhadela ao que se vai passando em Portugal e na Europa.

Sector financeiro

Muitos bancos estão já a antecipar uma nova descida nas taxas de juro praticadas pelo BCE, devido, entre outros motivos, às recentes declarações de Mario Draghi. Assim, a Euribor, que actualmente está num dos níveis mais baixos de sempre (0,75%), deverá descer ainda mais. Note-se que a Euribor a um mês está a ser negociada a 0,13%, o que representa um valor muito baixo à semelhança do que acontece com a Euribor a seis meses, muito utilizada como indexante no crédito à habitação, que está a ser negociada a 0,65%.
Infelizmente, esta realidade não trás grandes vantagens aos portugueses porque os spreads praticados pelos bancos atingem valores astronómicos, o que afecta seriamente as famílias e as empresas. Ainda assim, as pessoas que tenham créditos à habitação antigos beneficiam desta descida da Euribor porque gozam de spreads com uma taxa comportável, ao contrário do que acontece com queira contrair crédito nesta altura.
Também as taxas de juro relativas à dívida pública portuguesa continuam com yields muito elevados a dez anos, rondando os 10 % .

Mercado petrolífero

O que vem pressionar mais o panorama negro que se vive em Portugal e na Europa é o aumento do preço do barril de petróleo, que já ultrapassou os 110 dólares em Londres, o que levará, muito provavelmente, ao aumento do preço da gasolina e do gasóleo. Certamente, esta tendência de aumento do preço do barril manter-se-á, uma vez que, por um lado, a instabilidade que se vive no extremo oriente agrava-se a cada dia que passa, e por outro lado, o furacão que passará pelo golfo do México trará consequências negativas para a extracção petrolífera.

Política da energia

Finalmente, para enegrecer ainda mais o panorama (quando pensamos que as coisas já não podem piorar afinal …), colocou-se nos últimos dias a possibilidade do gás e da electricidade ficarem mais caros. A razão para isto reside na medida que o Ministério da Economia está a ponderar aplicar para reduzir as suas despesas. Esta medida traduz-se na passagem dos custos de supervisão das concessões na área do gás e da electricidade para os consumidores, ao contrário daquilo que hoje acontece, onde esses custos ficam a cargo da Direcção Geral de Energia e Geologia.
Esta hipotética medida, a ser implementada, constitui mais um obstáculo que o governo coloca aos portugueses, parecendo estar a testar até ao limite a sua paciência. Acresce-se, ainda, o facto de esta medida contrariar o que a troika pediu relativamente à necessidade de aumentar a competitividade dos custos de energia portugueses. Parece que temos um governo mais troikista que a troika quando se trata de penalizar a vida dos portugueses, mas quando se trata de os beneficiar, o governo fica aquém da troika.


Publicado no jornal online "Letra1", em 14/08/2012

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Verbum Die (XX)

"Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade."

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 29 de julho de 2012

O desvirtuamento do microcrédito



O objectivo do inventor do microcrédito, o bangladechiano Muhammad Yunis, foi criar a oportunidade para as classes mais desfavorecidas de adquirirem uma nova fonte de rendimento. Esta ideia valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz, uma vez que se apresentava como uma forma inovadora de fazer chegar o financiamento a pessoas que não tinham capacidades para contrair créditos nos bancos tradicionais. Desta forma, as instituições de microcrédito passariam a fornecer um montante adequado para a criação de pequenos negócios com juros baixos, possibilitando a emancipação pelo trabalho às populações mais carenciadas.

Ora, o que rapidamente aconteceu foi que muitas destas instituições passaram a desprezar alguns critérios básicos do seu funcionamento, nomeadamente o de se certificarem que o crédito seria empregue na criação de valor acrescentado. Resultado: o microcrédito, principalmente na Índia, passou a ser dirigido para o consumo, nomeadamente para despesas hospitalares, matrimoniais, fúnebres e materiais (televisões, mobília…). Assim, um projecto que visava emancipar os mais desfavorecidos, transformou-se em muitos casos num aprofundamento da sua miséria.

O desvirtuamento do microcrédito tornou-se estridente. Veja-se o que ainda acontece na Índia, onde as empresas deste sector implementaram um sistema de co-responsabilidade que se traduz na responsabilização de todos os devedores perante um incumprimento de alguns, o que origina tensões entre vizinhos e membros da mesma comunidade, destruindo a solidariedade aldeã. A somar a este desvirtuamento, estas empresas apoderam-se, de forma ilegal, dos bens e das fontes de rendimento das famílias endividadas, intensificando o pesadelo da sua existência. Para tentar fugir a este processo de expropriação, muitas famílias acabam por contrair créditos para pagar outros créditos, entrando numa espiral de endividamento, tal como acontece nos países ocidentais.

São inúmeros os casos de suicídio na Índia por incapacidade de pagamento das dívidas. O caso de Eega, uma rapariga de vinte anos, demonstra bem a falta de escrúpulos de algumas instituições de microcrédito. Vendo a sua família mergulhar cada vez mais no endividamento e sem dinheiro para comer, Eega pediu aos credores que reavaliassem a situação insustentável da sua família, tendo recebido como resposta a sugestão de se prostituir, uma vez que era bonita. Eega acabou por se imolar pelo fogo no dia 28 de Setembro de 2010.

Felizmente, as autoridades indianas já estão a adoptar medidas para combater estes crimes. Um decreto do governo do estado de Andhra Pradesh, onde se concentram um quarto dos microcréditos privados do país, proibiu os cobradores de irem a casa dos devedores e condicionou a contracção de novos empréstimos ao aval das autoridades. Outra medida positiva é a abertura de inquéritos sobre os suicídios, abrindo-se uma porta para a condenação dos autores das ameaças e assédios aos devedores. Ainda assim, a oposição quer ver medidas que vão ainda mais longe, nomeadamente o não pagamento das dívidas.

A solidariedade aldeã deste Estado, especialmente afectado pela ganância dos credores, tem aumentado nos últimos tempos, através de acções concertadas contra as instituições de microcrédito, como o não pagamento das dívidas. Como consequência destas acções, as taxas de reembolso estão a cair a pique, tendo passado de 97% para 20%, uma tendência que continuará a afirmar-se.

Muitas das empresas de microcrédito estão a deslocar-se para outros Estados, onde o quadro legal ainda lhes permite actuarem impunemente. Onde houver pobres, lá estarão estas empresas para lhes assegurarem a miséria. De facto, o que se passa na Índia reflecte bem o sentido da piada do famoso humorista francês Alphonse Allais: é preciso ir buscar o dinheiro onde ele está, isto é, entre os pobres – eles não têm muito dinheiro, mas são tantos…

Publicado no jornal online "Letra1", em 16/07/2012

domingo, 22 de julho de 2012

Verbum Die (XIX)


"Procure ser um homem de valor, em vez de ser um homem de sucesso."

Albert Einstein

domingo, 15 de julho de 2012

Ventos de mudança marcam a Cimeira Europeia





Os resultados da última cimeira da UE parecem ser finalmente positivos. Depois de 14 horas de intensas conversações, sob um ambiente cada vez mais ríspido entre alguns líderes europeus, surgem algumas propostas que podem mitigar os efeitos da crise.


Sabemos que a disputa negocial entre a Senhora Merkel, por um lado, e Mariano Rajoy e Mario Monti, por outro, foi muito intensa, ao ponto de os dois últimos se terem recusado a assinar o pacto de crescimento caso não fossem aplicadas medidas de financiamento imediato. Assim, espanhóis e italianos organizaram-se estrategicamente por forma a pressionarem a Alemanha para suavizar os custos da assistência financeira aos membros da Zona Euro em dificuldades. Este clima de desacordo, nunca visto nestes 30 meses de crise da Zona Euro, foi exponenciado pelas diferenças cada vez mais visíveis entre a Senhora Merkel e François Hollande.


Apesar de toda a controvérsia, é de louvar o facto de, não obstante a teimosia alemã, terem saído desta cimeira algumas propostas que poderão alterar o rumo dos acontecimentos. Desta forma, os dois fundos de apoio aos países em dificuldades, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira e o fundo que lhe vai suceder a partir deste Verão, o Mecanismo Europeu de Estabilização, poderão passar a apoiar directamente os bancos em dificuldades sem ser necessário a intervenção dos Estados, permitindo que a dívida pública não seja afectada pelas aventuras da banca.


Ora, esta medida que parece ser óbvia, apesar de só a muito custo ter sido implementada, alterará alguns processos dos países intervencionados, designadamente da Irlanda, uma vez que este país solicitou ajuda financeira devido exclusivamente ao comportamento dos seus bancos, registando-se, por consequência, um aumento brutal da sua dívida pública. No entanto, também em Portugal terá que haver um ajuste do programa, já que parte importante do que foi pedido emprestado, 12 mil milhões de euros, se destinou à banca.


Como contrapartida destas medidas, a Chanceler Merkel exigiu o estabelecimento de um sistema de supervisão bancária à escala europeia, que será coordenado pelo BCE – uma medida que parece ser excelente, dado que dificultará a assunção de comportamentos irresponsáveis e de risco por parte dos bancos.


Durão Barroso mostrou-se bastante satisfeito com os resultados desta cimeira, à semelhança do presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, que defendeu que os países que cumpram as regras estabelecidas devem poder usar os instrumentos de estabilização financeira para assegurar a confiança dos mercados relativamente às obrigações dos Estados soberanos. Ainda assim, manda a prudência que aguardemos mais um tempo para compreender como tudo isto irá ser concretizado, pois apenas conhecemos as linhas gerais.


No que se refere ao pacto de crescimento, este prevê um valor de 120 mil milhões de euros, equivalente a 1% do PIB da UE, para auxiliar países sob grande pressão dos mercados financeiros. Cabe ao Banco Europeu de Investimentos distribuir o dinheiro, cujo destino será essencialmente para as PMEs, responsáveis por grande parte dos postos de trabalho na Europa. Muitos economistas criticam este pacto por não angariar dinheiro novo, uma vez que grande parte dos 120 mil milhões de euros é dinheiro que já constava do orçamento europeu, embora estivesse afectado a outras despesas. Porém, parte deste valor constitui dinheiro novo dado que o Banco Europeu de Investimento irá ser recapitalizado com 10 mil milhões de euros, permitindo-lhe aumentar a sua capacidade de financiamento em cerca de 60 mil milhões de euros.


No que toca à complexa temática da crise grega, foram praticamente inexistentes os avanços nesta matéria, como se compreende pela extensão da actual agenda europeia. Samaras nem sequer esteve presente, devido a uma operação ao olho, embora tenha enviado uma carta ao Conselho Europeu, pedindo mais tempo para cumprir os objectivos acordados em troca da aceleração do programa de privatizações e das reformas estruturais. Como se sabe, o FMI já mostrou alguma abertura em relação a esta matéria, pois é cada vez mais claro que a situação grega é insustentável – recessão há 5 anos e uma taxa de desemprego de 23%. Certamente, a reunião entre a Troika e os líderes gregos na próxima semana trará novidades.


Face ao que parecem ser ventos de mudança numa Europa que tem sido liderada pela Alemanha, Portugal terá que posicionar-se junto daqueles que defendem os interesses que melhor se coadunam com os seus, o que não tem sido feito. A situação em Portugal é igualmente insustentável e o povo nem sempre é sereno… Veja-se o que está a acontecer com o sector da restauração que, durante este ano, perderá mais de 64 mil empregos. Falamos de um sector tradicionalmente importante para a economia portuguesa e que tem sido duplamente penalizado: por um lado, a diminuição do consumo privado em Portugal, que se reflecte fortemente na factura dos restaurantes, uma vez que as famílias cortam nas despesas não essenciais; e por outro lado, o aumento do IVA da restauração de 13% para 23%, procurando muitos dos restaurantes absorver este aumento do IVA por forma a não perderem clientes, o que acaba por não ser sustentável para a grande maioria.


Esperemos que estes ventos de mudança tenham a força suficiente para realmente mudarem alguma coisa. O impasse europeu surpreendeu muitos observadores pela sua inoperância, chegando-se mesmo a pensar que o fim da moeda única seria uma realidade inalterável. Agora, com estas novidades, tudo pode acontecer numa Europa cada vez mais difícil de adivinhar.

Publicado no jornal online "Letra1", em 1/07/2012

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Verbum Die (XVIII)

Nada é mais desagradável do que uma pessoa virtuosa com uma mente mesquinha.

Walter Bagehot, in Literary Studies

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Competitividade – A palavra que dá para tudo


A questão da competitividade é muitas vezes abordada de forma simplista e leviana. Em Portugal e, provavelmente, em todos os países, é afirmado de forma recorrente a necessidade de melhorar os índices de competitividade. Porém, esta questão é constantemente aproveitada para defender retrocessos nos direitos laborais, entre outras reivindicações de teor reaccionário. Os factores que contribuem para a competitividade são muitos e variados e dependem das características de cada país, uma vez que cada um tem a sua geografia, história, recursos e cultura. David Ricardo, histórico economista luso descendente, desenvolveu a famosa teoria das vantagens comparativas, onde cada país teria que, numa economia internacional aberta, desenvolver as suas potencialidades e pontos fortes por forma a garantir mercados onde possa ser altamente competitivo. Apesar do passar dos tempos e do desenvolvimento teórico das ideias de David Ricardo, vemos nos dias que correm inúmeras intervenções públicas no sentido de Portugal se tornar mais competitivo em relação ao exterior.

Exige-se um amplo debate nacional no sentido de seleccionar os sectores para os quais a economia portuguesa deve estar apontada, sem cair no “erro islandês” de pôr todos os ovos no mesmo cesto. Ouvimos falar muito do mar, uma vez que Portugal goza de um grande território marítimo, infelizmente mal aproveitado. Mas não parece haver incentivos que contribuam para que a iniciativa privada possa investir nas inúmeras actividades marítimas, uma vez que este tipo de investimento exige uma grande capacidade de financiamento.

Ora, o financiamento às empresas, em qualquer das actividades em que actuem, é um dos grandes obstáculos que os empresários portugueses enfrentam. Dificilmente conseguem competir com empresas de outros países quando estas têm ao seu dispor maior e melhor financiamento – falar de financiamento às empresas não pode significar endividamento de empresas para cobrir custos correntes mas sim para investir.

Outro grande obstáculo que as empresas portuguesas enfrentam está no funcionamento da justiça. É uma questão complexa, onde qualquer análise simplista dificilmente escapará à demagogia.

Felizmente, ao que parece, o nosso sistema tributário tem melhorado, apesar de continuar complicado para as empresas, principalmente para as PME´s. Espera-se, relativamente a esta matéria, que o relacionamento entre a administração fiscal e as empresas se possa tornar mais transparente.

Quanto ao debate sobre os sectores para onde a economia portuguesa se deve virar, ficar-nos-emos, provavelmente, por debates televisivos cujo tempo não permite passar das afirmações banais e das menções a lugares comuns. Quanto às conferências, são cada vez mais espaços de concordância formal e menos de dialéctica. Assim, numa era onde proliferam as plataformas comunicacionais, parece ser impossível estabelecer um debate profundo entre diferente visões e projectos para Portugal, cujo futuro continuará a alimentar-se em cadeias de fast-food.

Num país onde graça o desemprego, onde quem quer trabalhar não tem oportunidades, onde as boas qualificações da sua juventude não são aproveitadas, onde os emigrantes fazem sucesso lá fora porque são trabalhadores aplicados e, finalmente, onde o salário médio é dos mais baixos da união Europeia (assim como o salário mínimo), dever-se-ia “ostracizar” quem estabelece uma relação de causa-efeito entre a remuneração do trabalho e a falta de competitividade. Antes ouvir um contador de histórias da taberna portuguesa, que um vendedor de banha da cobra de colarinho branco.

Publicado no jornal online "Letra1", em 22/06/2012

quarta-feira, 20 de junho de 2012

De indefinição em indefinição




A Nova Democracia, encabeçada por Antonis Samaras, venceu as eleições legislativas gregas do Domingo passado, permitindo que muita gente respirasse fundo, nomeadamente aqueles que se revêem na actual política europeia. O que é facto é que o Presidente grego Karolos Papoulias deverá por esta altura estar a conversar com Samaras e a inteirar-se das dificuldades relativas à formação de um novo governo. Se, por um lado, a Nova Democracia precisa de se coligar com o Pasok, uma vez que não obteve a maioria absoluta – mesmo com o “bónus” de 50 deputados que o sistema eleitoral grego prevê para o partido vencedor – por outro lado, o Pasok, terceiro classificado nas eleições, afirma que apenas fará parte do novo executivo se o Syriza, segundo partido mais votado, também o integrar. Ora, como seria de esperar, o Syriza recusa-se a integrar um governo com os dois partidos responsáveis pelo “estado de coisas” na Grécia.

Alexis Tsipras, líder do Syriza, apesar de não ter conseguido vencer as eleições, alcançou um resultado extraordinário: 27% face aos 17% da primeira volta das eleições. Este jovem político de 38 anos, enfrentou a chantagem de vários líderes europeus, nomeadamente da Senhora Merkel, sem nunca se desviar dos seus princípios e mantendo sempre uma coerência nos seus discursos e ideias, características raras nesta classe política dos tempos que correm.

Relativamente aos comunistas ortodoxos do KKE, liderados por Aleka Papariga, os resultados foram muito negativos, tendo descido de 8,5% na primeira volta para 4,5% na segunda. Provavelmente, a causa para esta descida reside na recusa deste partido em se coligar com o Syriza, revelando uma rigidez inqualificável. Quanto aos neonazis da Aurora Dourada, os resultados mantiveram-se relativamente inalterados.

Perante tudo isto, confrontamo-nos com a continuação da indefinição grega. Os partidos que defendem o memorando obtiveram apenas 41% dos votos, o que significa que este continua a ter um fraco apoio do povo grego, cansado de um programa que merece a crítica da grande maioria dos economistas. Face a esta constatação, Samaras prometeu renegociar os termos do memorando, o que deixou a Alemanha de olho franzido, tendo já um porta-voz do governo germânico deixado claro que a “solidariedade” alemã tem limites.

Vemos na Europa uma onda crescente de intelectuais, artistas, estudantes, entre outros, oporem-se com maior veemência ao modelo da austeridade. Veja-se o que aconteceu ontem em frança, onde os socialistas obtiveram uma vitória estrondosa através de um discurso contrário ao que se tem feito até esta data na Europa. E a razão para isto é muito simples: a austeridade adoptada como antídoto para os problemas europeus assemelha-se ao método salazarista/fascista, onde a promoção da necessidade de viver pobre mas honrado choca com a luxúria crescente de um punhado de gente que constrói e financia esta promoção. No tempo do Salazar eram os grandes industriais como a família Mello, hoje são os banqueiros que vêem os seus prejuízos e disparates serem pagos pelos cidadãos dos países em que operam. Se desconfia daquilo que escrevo perca algum tempo a analisar o que aconteceu em Espanha, que passou de uma divida pública considerada aceitável para uma situação de insustentabilidade, devido à “nacionalização” dos prejuízos dos seus bancos.

Pessoalmente, creio que todos devemos aplicar alguma austeridade às nossas contas, por forma a pouparmos e não estarmos exageradamente dependentes de financiamento externo. Mas uma coisa é falarmos desta austeridade de tipo protestante, outra é falarmos da austeridade em que vivemos no sul da Europa, que apenas promove miséria. Veja-se o que aconteceu há menos de cem anos atrás na Alemanha, o berço do protestantismo, onde as condições que lhe foram impostas pelas potências vencedoras após a primeira grande guerra, levaram a República de Weimar a adoptar um conjunto de medidas a que chamava de “austeras” para recuperar as contas públicas. Resultado: ascensão do nazismo! E se acha que a história não se repete, perca algum do seu tempo a estudar a emergência do nacionalismo na Europa actual…

Publicado no jornal online "Letra1", em 18/06/2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Verbum Die (XVII)

Da Condição Humana

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Da Europa à Grécia, vemo-nos gregos


A grande maioria da população grega quer a permanência na Zona Euro. Na União Europeia, os governos que se pronunciaram sobre esta questão e a Comissão Barroso defendem a permanência da Grécia na Zona Euro. E mesmo o Syrisa, partido à esquerda do Pasok e forte candidato à vitória das eleições do dia 17 de Junho, defende a permanência da Grécia na zona euro. A questão, claro está, centra-se na escolha do melhor projecto para que essa permanência se concretize. E se quiséssemos analisar esta questão a fundo, teríamos que alargar o espectro da discussão para o funcionamento do Banco Central Europeu.

A criação do euro à imagem e semelhança do marco alemão levantou muitos problemas relacionados com a capacidade de países com moedas mais fracas, como Portugal e Grécia, se adaptarem a esta nova moeda. Alguns economistas cedo apontaram para estes problemas, cujo melhor exemplo em Portugal é João Ferreira do Amaral.

Ao constatarmos uma taxa de desemprego jovem superior a 40 % nalguns países da Zona Euro, rapidamente compreendemos que a resposta europeia à crise não tem surtido efeito, não descurando as responsabilidades que os governos e bancos destes países têm perante este cenário. Face a esta situação, alguns cidadãos gregos, designadamente da cidade de Volos, recorrem a uma solução ancestral: a criação de uma moeda que funciona como um cheque pessoal, reconhecida por um conjunto de cidadãos que depositam uma forte confiança entre si. A principal vantagem deste sistema reside no fortalecimento das trocas entre pessoas de baixos rendimentos.


Assentando num modelo distinto do que estes cidadãos gregos praticam, o Deutsche Bank, o banco privado alemão mais poderoso, propôs a introdução de uma moeda paralela na Grécia no caso de os adversários das medidas de austeridade ganharem as eleições legislativas. Esta proposta assenta na emissão de títulos de dívida pública helénicos, que poderão ser vendidos nos mercados de capitais. O pretendido é, por um lado, garantir a continuação dos apoios financeiros internacionais para que a Grécia possa pagar as suas dívidas, e, por outro, possibilitar às autoridades gregas desvalorizarem a sua própria moeda sem ser necessário abandonar o Euro.

Inicialmente, segundo os estudos do Deutsche Bank, o “Geuro”, nome sugerido para esta moeda, sofreria uma forte desvalorização em relação ao Euro, apesar de o governo grego ter a possibilidade de apreciar a sua nova moeda através de uma política de austeridade orçamental.


Em suma, alargam-se os horizontes em relação ao debate sobre o que fazer perante a tragédia grega. Mas se a cultura europeia se iniciou na Grécia e se difundiu por toda a Europa através dos Romanos, a tragédia grega pode também difundir-se por toda a Europa através da consagrada incompetência dos líderes europeus. A questão já ultrapassa o razoável – uma coisa é adoptar uma política de refreamento do consumo e de estímulo da poupança, outra é adoptar políticas draconianas cujos resultados estão ao alcance de uma elementar cultura histórica.


Publicado no Jornal online "Letra1", em 11/06/2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Verbum Die (XVI)

A Poesia não se Inventou para Cantar o Amor

A poesia não se inventou para cantar o amor — que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo. A adoração ou captação da divindade e a estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: — e a poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e conduzindo os homens. Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ansia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo — é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do dinheiro, muito para baixo da política... É uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem. «Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora!
Ora quando uma arte teima em exprimir unicamente um sentimento que se tornou secundário nas preocupações do homem — ela própria se torna secundária, pouco atendida e perde a pouco e pouco a simpatia das inteligências. Por isso hoje, tão tenazmente, os editores se recusam a editar, e os leitores se recusam a ler, versos em que só se cante de amor e de rosas. E o artista que não quer ser uma voz clamando no deserto e um papel apodrecendo no armazém, começa a evitar o amor como tema essencial da sua obra.

Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes

domingo, 10 de junho de 2012

Quando nacionalizar é a palavra de ordem de alguns líderes latino-americanos




Nos últimos anos, parte significativa da América Latina tem adoptado uma agenda política semelhante, que assenta, essencialmente, numa estratégia de fortalecimento do Estado perante o sector privado. Esta estratégia reflecte-se na nacionalização de empresas que integram os sectores fundamentais das respectivas economias: siderurgia; mineração; hidrocarbonetos; transportes; educação; saúde; comunicação e banca. Este bloco latino-americano por alguns designado “bloco socialista”, integra a Venezuela, a Bolívia, o Equador e a Argentina. Segue-se no presente artigo, uma brevíssima descrição do processo em cada um destes países e do modelo distinto adoptado pelo Brasil.

Venezuela 

Hugo Chávez, no poder desde 1999, tem associado a construção do socialismo do século XXI ao processo de nacionalizações que tem coordenado. Deste processo podemos destacar a nacionalização da Compañia Anónima Nacional de Teléfonos de Venezuela (CANTV), outrora controlada pela empresa norte-americanaVersíon, e da Empresa de Electricidad de Caracas (EDC), outrora controlada pela AES. Através do seu discurso inflamado e mobilizador, Hugo Chávez é actualmente o mais mediático dos líderes latino-americanos, aludindo constantemente ao legado de Simón Bolívar, militar e político venezuelano que lutou pela independência da América espanhola. Chávez critica de forma contínua as actuações da NATO e, em especial, dos EUA.

Bolívia

Evo Morales, o primeiro índio a chegar à presidência boliveriana, em 2006, herdou um dos países mais pobres da América Latina mas que possui a segunda maior reserva de gás natural do continente americano. Iniciou o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos, aproveitando a data simbólica do 1º de Maio para nacionalizar companhias eléctricas, petrolíferas e metalúrgicas. Destas, podemos destacar a YPFB (estatal boliviana de gás e petróleo) e a Red Eléctrica. Para estes e outros casos, a justificação da nacionalização prendeu-se com o baixo nível de investimento das empresas privadas, como a espanhola Repsol e a brasileira Petrobras.

Equador

 Com a subida de Rafael Correa ao poder, em 2007, o Equador passou a ter o mesmo mote para o seu desenvolvimento que os países anteriormente referidos – criar e praticar o socialismo do XXI. No entanto, o modelo desenvolvido por Correa é diferente do que é praticado por aqueles países. Veja-se o teor da reforma da lei relativa aos Hidrocarbonetos, que permite aos privados proceder à prestação de serviços, cabendo ao Estado recolher toda a produção por um preço definido por si. Rafael Correa ficou conhecido pela forma como lidou com a dívida pública no momento em que chegou ao poder, anulando-a por a considerar ilegítima devido à corrupção que envolvia a sua formação.

Argentina

A Argentina, pela importância história e geográfica que comporta, tem tido um acompanhamento mediático mais intenso. Desde a sua chegada à presidência, em 2007, Cristina Kirchner tem reclamado o direito de os argentinos escreverem a sua própria história sem interferência de interesses externos. Partindo deste princípio, Kirchner tem adoptado algumas posições controversas, nomeadamente a expropriação de 51% das acções da Repsol na YPF (petrolífera argentina que em 1999 havia sido privatizada). Esta decisão assenta em dois factores fundamentais: a intenção de este país fortalecer a soberania energética; e a acusação de que a Repsol não teve uma gestão eficiente (sustentada, em parte, no facto de a Repsol proceder frequentemente à distribuição de dividendos aos seus accionistas, não os reinvestindo – entre 1999 e 2011 a YPF obteve ganhos líquidos de 16.450 milhões de dólares, dos quais repartiu 13.246 milhões pelos seus accionistas), colocando em risco o auto-abastecimento de combustíveis do país. Refira-se que, para além dos governantes e dos respectivos apoiantes, muitos sectores da oposição, sindicatos e movimentos sociais têm aplaudido o processo de nacionalização da YPF.

A descoberta por parte da Repsol-YPF de uma reserva na província de Neuquén, designada por “Vaca Muerta”, com potencial para a produção de 22 mil milhões de barris, galvanizou a polémica em torno deste processo de nacionalização. Tal descoberta pode catapultar a Argentina para outro patamar ao nível da exploração petrolífera.

Brasil – um caso diferente

O Brasil, que já é o principal destino dos investimentos de Espanha na região, tem beneficiado de uma maior segurança jurídica e de um ambiente político e económico mais estável comparativamente aos seus vizinhos. O modelo brasileiro, que permitiu ao país passar de importador de petróleo para o auto-abastecimento em 15 anos, tem sido referido como exemplo. Este modelo conta também com uma forte presença do Estado, que garante uma política de gestão a longo prazo e, por consequência, uma maior propensão para atrair investidores. Ainda assim, o Brasil é muitas vezes criticado pelo seu altíssimo proteccionismo, o que poderá, por outro lado, desviar certos tipos de investimento para países como a Colômbia e o México.

Conclusão

Face à dinâmica que observamos na América Latina, a análise desenvolvida por Georg Caspary para o Deutsche Bank sobre o mercado de energia desta região, alcança uma conclusão lógica para o leitor – o elevado grau de desigualdade (comparativamente a outras regiões em desenvolvimento) e a riqueza dos recursos naturais são os motores impulsionadores para o que o autor chama de “nacionalismo de recursos” ou “nacionalismo energético”.



Publicado no jornal online "Letra1", em 06/06/2012

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Portugal Outlook




Numa época cuja interdependência entre os diversos actores internacionais se afirma como um factor essencial para a compreensão da dinâmica político-económica global, atentar sobre qual a ideia de Portugal no estrangeiro e o que sobre nós se pensa é um exercício de grande relevância. Assim, este artigo apresenta-se como um modesto contributo nesse sentido, projectando uma breve análise sobre a imagem do Governo português no estrangeiro.

As eleições

Os resultados das eleições legislativas portuguesas do dia 5 de Junho de 2011 foram vistos pela imprensa internacional como factor integrante de um fenómeno à escala da União Europeia: a derrota, nas respetivas eleições, dos governos que se viram a braços com uma crise financeira sem precedentes desde os acordos de Bretton Woods.

A capa da edição nacional do El País (jornal espanhol) fez manchete com a alteração política em Portugal – “A crise arrasa com os socialistas portugueses nas eleições”. Entre os jornais alemães, o Spiegel escreveu que “os portugueses castigam o Governo de Sócrates e entregaram o poder aos conservadores do PSD” e o Frankfurter Allgemeine destacou a derrota de Sócrates. Nos jornais francófonos, o Le Monde não atribuiu grande importância aos resultados das eleições portuguesas, ao passo que o Libération sublinhou a subida ao poder de Passos Coelho. Já no Reino Unido, o Financial Times escreveu que “a vitória social-democrata abre caminho para o resgate externo no valor de 78 mil milhões de euros”, enquanto o The Guardian destacou que Passos Coelho obteve uma grande vitória eleitoral, em sintonia com um movimento de mudança que abrange toda a Europa. Finalmente, em Itália, o Corriere della Sera afirmou que “como previsto, o eleitorado português puniu o PS”.

Primeiros passos do executivo

Poucos meses após a entrada em funções do governo passista, Obama já clamava numa conferência na Casa Branca que “ao contrário do que as pessoas andam a dizer, nós não somos a Grécia nem Portugal”. Acrescentando ainda que “ao contrário da Grécia ou Portugal, nós temos a possibilidade de estabilizar as finanças da América por uma década ou 15 e 20 anos, se quisermos agarrar este momento”. Decididamente, estas não foram palavras de estímulo ao Governo português que então iniciava funções.

A somar ao cenário negativo que as perspectivas sobre Portugal carregavam, veio juntar-se o escândalo das contas públicas da Região Autónoma da Madeira, que fez manchete de artigos em vários jornais internacionais e notícia na maioria dos telejornais europeus.

Passados poucos meses de governação passista, surgiam as primeiras avaliações ao trabalho do executivo. Escrevia, então, o El País sobre Portugal que “o governo… eliminará os subsídios aos funcionários [públicos] que ganhem mais de 1.000 euros por mês, medida que também abrange os pensionistas.” O Le Monde destacava, por sua vez, a nova série de medidas austeras que iriam ser implementadas em Portugal, em convergência analítica com o que o Le Fígaro chamava de “Orçamento de rigor para 2012″. As descidas de rating de que Portugal foi alvo por parte das agências norte-americanas, que já vinham do governo anterior, enegreceu o quadro que a imprensa internacional traçava sobre Portugal . No El País, podia-se ler que “a agência Moody’s baixa a divida de Portugal ao nível lixo”. O Tema não passou despercebido em Inglaterra, designadamente através do The Times.

2012 – a continuação

Já em Janeiro do presente ano, o acordo laboral alcançado através da concertação social, assinado pelo governo, pelo patronato e pela UGT, foi bem visto pelos líderes e pela imprensa internacionais. A chanceler alemã, Angela Merkel, louvou publicamente o sucesso desta concertação social, integrando-a nos sucessos alcançados na Europa para uma política sustentável. Infelizmente, este acordo laboral parece estar em cheque, uma vez que a UGT reclama a falta de cumprimento do governo para com o acordado relativamente ao crescimento económico. E também isso faz eco lá fora…

Dois meses mais tarde, Portugal volta à ribalta mediática devido à Greve Geral de 22 de Março, a segunda desde o resgate financeiro protagonizado pela Troika. O The Wall Street Journal citou as declarações do secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos – “o país chegou ao máximo de austeridade que pode aguentar!” Ao passo que o jornal francófonoLibération, intitulou um artigo sobre a greve geral de “Um Portugal em greve quer dizer basta à austeridade.”

Mas a maioria dos líderes europeus, principalmente os que se identificam com a linha política do actual Governo, tem vindo a lançar elogios sobre o actual executivo. Veja-se o exemplo do agora ex-presidente francês, Nicolas Sarkozy, numa entrevista ao Expresso – “Estou muito optimista com Portugal. Portugal está em avanço, tal como a França, quanto aos seus objectivos em matéria de redução do défice”.

Do Portugal em palavras ao Portugal real

Esta retórica optimista que também Angela Merkel, Durão Barroso, entre outros, têm tido em relação ao governo português, procurando encorajá-lo num mandato difícil, não tem tido eco na imprensa internacional, nem nas agências de rating. Refira-se o exemplo da Associated Press, que recentemente realizou uma reportagem sobre Portugal. Nesta é traçado o retrato de um país com cada vez mais casos de famílias a declararem falência. Antigamente poucas famílias portuguesas declaravam falência, em contraste com o que hoje acontece, onde o número de insolvências pessoais (mais de 670 mil portugueses) já é superior ao das empresas.

Publicado no jornal online "Letra1", em 05/06/2012