domingo, 31 de março de 2013

O homem e a sombra

As sandálias gastas dos quilómetros incontáveis. As calças de pano cobertas do pó que a cada metro se acumula. A camisa aos quadrados de manga comprida, meia desabotoada, desfraldada e amarrotada. Um pano branco que cobre a cabeça, impedindo que a lucidez se evapore perante o sol ardente de cada dia. Um homem só, que teme ser abandonado pela própria sombra.
No deserto – onde, de acordo com o saber tuaregue, o homem reconhece a sua própria alma – o tempo estende-se no horizonte. Se, ao olhar o céu, o homem descobriu o infinito, ao olhar o deserto, o homem descobriu a eternidade. Foi aqui que Moisés, Jesus e Maomé transcenderam a sua própria existência, tornando-se numa candeia desta grande travessia que é a vida.

O caminhante, a cada dia mais cansado, procurava o seu destino a cada novo passo. A vida separou-o de tudo o que amou. A vila onde nasceu foi feita em cinzas pelo calor das chamas, os amigos trespassados pelas lanças afiadas de guerras odiosas, a mulher e o filho, demasiadamente doloroso para ser lembrado, são a razão derradeira para cada pegada na areia. Apenas lhe resta a sombra.

Pedira ajuda a adivinhos, bruxos e feiticeiros, mas tudo o que lhe deram foram promessas por cumprir em troca das moedas de esforço de anos de trabalho. Tal como uma presa que, apanhada pela doença, se torna no alvo ideal do predador, a tragédia dos seus dias deu origem à fraqueza que consentiu o esvaziamento dos seus bolsos.

Vidrado na sombra, via que, quanto mais se esticava, maior ela era. Sabia que, no dia em que tombasse, também ela tombaria. Via, na sombra, um espelho baço que o acompanhava a cada dia e, se o perdesse, deixar-se-ia de reconhecer. A sombra era tudo o que tinha.

Num momento que o tempo não contou, atravessou os extremos pela extremidade onde se tocam – da intransponível escuridão que ofusca tudo o resto, até à plenitude que dá sentido ao mais ínfimo grão de terra que se lhe cola aos dedos. Ao aperceber-se que, face a todas as amarguras e atracções que se lhe atravessaram no caminho, se manteve fiel a si próprio, o homem, que ainda vive no deserto, é hoje, provavelmente, o último a temer ser abandonado pela própria sombra.

Publicado no ptjornal, em 03/02/2013

quarta-feira, 13 de março de 2013

Mar da China: um mar de interesses e de conflitos















Os problemas económicos e financeiros, devido à especial dimensão que atingiram na Europa, têm merecido grande parte da nossa atenção. No entanto, é sempre importante olharmos para outras zonas do globo e saber o que por lá se vai passando, não vá, um dia, o imprevisto bater-nos à porta.

O mar da China meridional é, seguramente, uma dessas zonas para as quais devemos olhar. Rico em recursos haliêuticos e em jazidas de hidrocarbonetos, este mar deve a sua enorme relevância ao facto de albergar algumas das principais rotas marítimas internacionais, o que leva a um confronto de interesses entre diversas potências, principalmente entre a China, os EUA, o Vietname e as Filipinas.

Alguns governos das regiões costeiras chinesas, como Hainan, procurando favorecer as suas empresas, desenvolvem uma política de influência e de ocupação do mar da China meridional, chegando mesmo a incentivar os seus pescadores a avançarem até às zonas de conflito e a equipar os seus navios com sistemas de navegação por satélite, o que permite às autoridades chinesas actuarem mais rapidamente em caso de confronto. De facto, os barcos de pesca têm servido como uma peça importante da estratégia de influência traçada pela China.

No entanto, a partir de Abril de 2012, as tensões entre os interesses de diversos países no mar da China meridional assumiram um carácter mais beligerante. A disputa do Recife Scarborough, entre a China e as Filipinas, culminou com a imposição do mais forte: a China assumiu o controlo deste recife e impediu os filipinos de pescar naquela zona.

O clima ficou ainda mais cinzento no momento em que a China e o Vietname tiveram um despique entre si. Após o governo vietnamita ter implementado novas regras de navegação nas águas dos arquipélagos Spratleys e Paracels, Pequim respondeu através do estabelecimento de um quartel militar nesta região, paralelamente a medidas de restrição económica, mostrando que não facilitará no que concerne à defesa dos seus interesses.

Contudo, o pior ainda estava para vir. Desta feita, foi no mar da China oriental que ocorreram novos conflitos. No último mês de Setembro, o governo nipónico anunciou a aquisição de três das cinco ilhas Senkaku, até então na posse de um japonês muito rico. Ora, o nacionalismo chinês atinge o cume quando se trata de problemas com o Japão. Não nos esqueçamos do massacre de Nanquim, ainda muito presente na memória colectiva chinesa, onde morreram mais de 200.000 chineses. Por isso, a sociedade chinesa reagiu intensamente e pressionou o governo para responder de forma firme ao Japão. Sem demoras, Pequim, para além de medidas punitivas do ponto de vista económico, ensaiou diversas manobras militares, traçando, oficialmente, uma linha fronteiriça a partir da qual as ilhas Senkaku ficam sob administração chinesa.

Seja qual for o destino deste conflito em particular, observa-se um alarmante crescimento dos nacionalismos e da corrida aos armamentos, tornando o mar da China numa região potencialmente conflituosa. Não é por acaso que o tabuleiro de xadrez norte-americano se virou, em detrimento do Atlântico – e, por consequência, das Lages, onde o contingente militar norte-americano será seriamente reduzido –, para o Pacífico.

Numa altura onde a Europa se vê deslocada para a periferia, não se vêem organizações internacionais com força suficiente para travar esta espiral de conflito. Uma coisa é certa: uma guerra na região do Pacífico, a acontecer, poder-se-á tornar numa terceira grande guerra.

Publicado no Letra1, em 29/01/2013

sábado, 2 de março de 2013

Salve-se quem puder

Enquanto uns senhores andavam por aí, após o anúncio do regresso aos mercados, a lançar fogo-de-artifício pelas calçadas da miséria em que se tornaram as nossas cidades, lia, através do Observatório da Emigração, que, num pequeno país como o nosso, emigram, todos os anos, cerca de 120 mil pessoas. Este número, que se tem verificado nos últimos anos, só não é maior porque as oportunidades no estrangeiro não proliferam.

De facto, custa ver os tsunamis que por aqui passam, arrastando consigo muitos milhares de compatriotas para além fronteiras. Uns param no centro da Europa, outros na África meridional e outros há que só param no outro lado de lá, junto dos simpáticos cangurus. É com cada tsunami que nem dá para acreditar – já estive mais longe de construir um bunker para me manter a salvo.

Estou convencido que, considerando os efeitos pós-traumáticos que resultam destas tragédias, devemos continuar a evitar tocar neste assunto. O facto de estes tsunamis fazerem lembrar aqueles que por cá passaram na década de sessenta não deve merecer demasiada atenção. É demasiado doloroso pensar que, passado meio século, continuamos a viver num Portugal onde não cabem todos os portugueses.

De qualquer das formas, não podemos ser piegas. Temos que ser valentes. Afinal de contas – como disse Pedro −, “emigrar não pode ser um estigma”. Ah! Já me sinto muito melhor com estas palavras.

Viver no estrangeiro é uma experiência muito gratificante – sim, não podemos ser piegas –, mesmo quando não tenha sido por opção. Isto não tem nada que saber no que se refere à gestão de pessoal: se há trabalhadores a mais, eles que emigrem. Família que fica para trás? Isso resolve-se com uma visita no Verão. Família por construir? Isso, com o avanço da medicina, trata-se aos quarenta. Idosos a mais? Citando o ministro das finanças japonês, Taro Aso, que se os deixe “morrer rapidamente”.

Aí está a doutrina Hayekiana solidamente implementada. Da importância do indivíduo à ideia de que − como dizia Margaret Thatcher − "não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos", vai o suficiente para que se grite a bordo, “salve-se quem puder”!


Publicado no ptjornal, em 27/01/2013