quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ontem os nossos pais, hoje o Reichstag

Até uma determinada idade, o nosso futuro é decidido pelos nossos pais, que discutem, debaixo do mesmo tecto onde vivemos, o que será melhor para nós. A sua principal preocupação é preparar-nos para, um dia, alcançarmos a nossa independência, através da capacidade de lutar contra as vicissitudes da vida. Para isso, deixam-nos um conjunto de ferramentas e estruturas, de entre as quais se destaca a democracia – provavelmente, o seu mais precioso legado.

Actualmente, quando o nosso futuro nos é entregue, é instantaneamente manipulado por pessoas que não conhecemos nem nunca vimos. Subitamente, a democracia desaparece e, quando vamos à sua procura, encontramo-la a ser mastigada em Bruxelas para, depois, ser engolida e digerida em Berlim.

A questão não é ser europeísta ou antieuropeísta – isso seria desviar a atenção do essencial. A questão é ser democrata ou antidemocrata, ou seja, entre escolher uma Europa que represente todos os seus cidadãos ou uma Europa que represente apenas parte dos mesmos. De facto, à excepção do parlamento europeu, que tem poucos poderes, não existe verdadeiramente democracia nas instâncias europeias.

Homens e mulheres a quem não concedemos legitimidade democrática decidem, à porta fechada, sem qualquer cobertura jornalística, o nosso futuro. Para tentar saber o que se passa nas reuniões dos líderes europeus, temos que observar as conferências de imprensa organizadas à saída. Porém, não ficamos a saber muito, uma vez que, ao ouvirmos os dirigentes europeus falar sobre o que se passou nestas reuniões, parece que assistimos à leitura repetida do mesmo ditado. Podemos, ainda, recorrer aos comunicados de imprensa, contudo não saberemos mais do que as verdades oficiais.

As mentes mais imaginativas estarão, nesta altura, a projectar a instalação de microfones escondidos nas salas destas reuniões. Nada de novo: em 2003, foi descoberto um sistema de escuta clandestino nas salas de reuniões do Conselho Europeu, tendo os serviços de segurança belgas, após uma longa investigação, suspeitado que teria sido a Mossad – os serviços secretos israelitas – a montar aquele sofisticado sistema de escuta. No entanto, como é tradição neste tipo de casos, o caso foi arquivado.

A única forma para sabermos, realmente, o que se passa nestas reuniões é através das notas Antici. Este nome deve-se a um diplomata italiano, já falecido, que nos anos setenta escreveu um conjunto de relatórios que transcrevem, quase completamente, as conversações entre os dirigentes europeus nas cimeiras. Actualmente, essa missão é desempenhada por um funcionário do secretariado-geral do Conselho, denominado debriefer, que dita aos diplomatas nacionais o que se diz nas cimeiras. Note-se que, como seria de esperar, as Notas Antici não são publicadas. No entanto, os autores da obra Circus politicus, Christophe Deloire e Christophe Dubois, conseguiram obter algumas notas referentes aos anos de 2010 e 2011, onde está plasmado o pânico dos dirigentes europeus perante a crise financeira e as suas ideias para a contrariar – as ideias verdadeiras e não as ideias oficiais.

As notas Antici permitem percepcionar o oceano que separa os interesses alemães dos interesses dos países do sul da Europa. Permitem, por exemplo, compreender que a abertura comercial da UE à China corresponde aos interesses alemães de exportarem determinados produtos para a China, uma vez que o mercado do sul da Europa já não os satisfaz. Esta mesma abertura contraria os interesses de países como o nosso, especializados, por exemplo, na indústria têxtil, alvo de uma concorrência devastadora por parte dos têxteis chineses de má qualidade e baixo preço, graças a uma mão-de-obra desprovida dos mais elementares direitos laborais.

Ontem, o nosso futuro era discutido pelos nossos pais, mesmo ao nosso lado, hoje, o nosso futuro é, essencialmente, discutido no Reichstag. É assim a vida de um jovem adulto português…

Publicado no jornal online ptjornal, em 09/12/2012

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