domingo, 29 de julho de 2012

O desvirtuamento do microcrédito



O objectivo do inventor do microcrédito, o bangladechiano Muhammad Yunis, foi criar a oportunidade para as classes mais desfavorecidas de adquirirem uma nova fonte de rendimento. Esta ideia valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz, uma vez que se apresentava como uma forma inovadora de fazer chegar o financiamento a pessoas que não tinham capacidades para contrair créditos nos bancos tradicionais. Desta forma, as instituições de microcrédito passariam a fornecer um montante adequado para a criação de pequenos negócios com juros baixos, possibilitando a emancipação pelo trabalho às populações mais carenciadas.

Ora, o que rapidamente aconteceu foi que muitas destas instituições passaram a desprezar alguns critérios básicos do seu funcionamento, nomeadamente o de se certificarem que o crédito seria empregue na criação de valor acrescentado. Resultado: o microcrédito, principalmente na Índia, passou a ser dirigido para o consumo, nomeadamente para despesas hospitalares, matrimoniais, fúnebres e materiais (televisões, mobília…). Assim, um projecto que visava emancipar os mais desfavorecidos, transformou-se em muitos casos num aprofundamento da sua miséria.

O desvirtuamento do microcrédito tornou-se estridente. Veja-se o que ainda acontece na Índia, onde as empresas deste sector implementaram um sistema de co-responsabilidade que se traduz na responsabilização de todos os devedores perante um incumprimento de alguns, o que origina tensões entre vizinhos e membros da mesma comunidade, destruindo a solidariedade aldeã. A somar a este desvirtuamento, estas empresas apoderam-se, de forma ilegal, dos bens e das fontes de rendimento das famílias endividadas, intensificando o pesadelo da sua existência. Para tentar fugir a este processo de expropriação, muitas famílias acabam por contrair créditos para pagar outros créditos, entrando numa espiral de endividamento, tal como acontece nos países ocidentais.

São inúmeros os casos de suicídio na Índia por incapacidade de pagamento das dívidas. O caso de Eega, uma rapariga de vinte anos, demonstra bem a falta de escrúpulos de algumas instituições de microcrédito. Vendo a sua família mergulhar cada vez mais no endividamento e sem dinheiro para comer, Eega pediu aos credores que reavaliassem a situação insustentável da sua família, tendo recebido como resposta a sugestão de se prostituir, uma vez que era bonita. Eega acabou por se imolar pelo fogo no dia 28 de Setembro de 2010.

Felizmente, as autoridades indianas já estão a adoptar medidas para combater estes crimes. Um decreto do governo do estado de Andhra Pradesh, onde se concentram um quarto dos microcréditos privados do país, proibiu os cobradores de irem a casa dos devedores e condicionou a contracção de novos empréstimos ao aval das autoridades. Outra medida positiva é a abertura de inquéritos sobre os suicídios, abrindo-se uma porta para a condenação dos autores das ameaças e assédios aos devedores. Ainda assim, a oposição quer ver medidas que vão ainda mais longe, nomeadamente o não pagamento das dívidas.

A solidariedade aldeã deste Estado, especialmente afectado pela ganância dos credores, tem aumentado nos últimos tempos, através de acções concertadas contra as instituições de microcrédito, como o não pagamento das dívidas. Como consequência destas acções, as taxas de reembolso estão a cair a pique, tendo passado de 97% para 20%, uma tendência que continuará a afirmar-se.

Muitas das empresas de microcrédito estão a deslocar-se para outros Estados, onde o quadro legal ainda lhes permite actuarem impunemente. Onde houver pobres, lá estarão estas empresas para lhes assegurarem a miséria. De facto, o que se passa na Índia reflecte bem o sentido da piada do famoso humorista francês Alphonse Allais: é preciso ir buscar o dinheiro onde ele está, isto é, entre os pobres – eles não têm muito dinheiro, mas são tantos…

Publicado no jornal online "Letra1", em 16/07/2012

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