Observar a agressão sofrida pelas
palavras é angustiante. Perceber que o sentido que damos às palavras é
manipulado pela retórica de uns poucos ou de uns tantos, fere a nossa confiança
nas palavras. Sócrates bem se lamentava das consequências nefastas da acção dos
sofistas, contudo imprimiu indignação a essa lamentação e dessa indignação
resultou um combate firme que empreendeu durante toda a sua vida.
A palavra democracia, por exemplo, é
vilipendiada todos os dias, em todo o lado. Basta um país ter eleições, nalguns
simulando-as, para os respectivos líderes se armarem de legitimidade para executarem
determinadas políticas internas e externas, defendendo-se a todo o instante com
o escudo da legitimidade democrática. Obviamente, atribuo toda a importância ao
sufrágio universal, indispensável à prossecução do primado da maioria sobre a minoria.
Mas isso não significa que os consensos necessários ao bom funcionamento de uma
sociedade se pautem apenas pela consecução da vontade da maioria. Esta deve
procurar interiorizar uma lógia que reforce a sua condição e, consequentemente,
deve interiorizar princípios de tolerância para com as minorias e repugnar a
condenação da diferença. Deste modo, se as manifestações das identidades não
invadirem a liberdade umas das outras, se o que as une for o respeito, a
maioria sairá reforçada e espelhará maior diversidade.
Uma sociedade que se traduza numa
diversidade ordenada, ordenada no sentido da responsabilidade que a liberdade
acata e, por sua vez, responsabilidade no sentido do respeito pela liberdade de
outrem, é uma sociedade mais rica e estimulante. Defendo a defesa da expressão
de diferentes culturas com o mesmo entusiasmo que defendo uma sociedade que
represente a comunhão de diferentes expressões.
Através deste breve raciocínio, concluo
que a democracia em que vivemos está refém de uma tendência de isolamento das
maiorias. Os seus representantes, por detrás do escudo da legitimidade
democrática, tomam medidas que desprezam os juízos de valor das minorias. Mas o
mais grave não chega a ser isto. O mais grave é o modo como as maiorias se
formam. Existem vários instrumentos ao dispor dos políticos para alcançarem a
maioria nas eleições. Um dos principais instrumentos é a televisão, cujo acesso
está dependente do poder económico e mediático que cada campanha comporta. Assim, a televisão, sem descurar dos outros
suportes comunicacionais, como a rádio ou os jornais, assume um papel de
destaque para a formação da opinião pública e, por isso, para o resultado das
eleições.
É através destes suportes
comunicacionais que a retórica se torna num teatro a todo o momento. É através
destes suportes comunicacionais que as palavras são esvaziadas de sentido e que
os debates políticos bóiam sobre um imenso mar de subjectividade. Se as palavras
tivessem poder reactivo e agressivo perante quem as manipula e delas abusa, o
desconforto físico substituiria a sobranceria dos que vêem na eloquência uma
forma de enganar multidões.
A pior consequência do desgaste da
palavra "democracia" é a mentalização por parte da maioria de que a democracia
não lhe serve. E, como sabemos, o que não falta são candidatos a um poder
vitalício.
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